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São Paulo, segunda-feira, 23 de junho de 2003

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OPINIÃO ECONÔMICA

Mais iguais do que os outros

FRANCISCO DE ALMEIDA E SILVA

Os rumos tomados pelo governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva e as discussões internas do PT provocadas pelos chamados radicais, que remetem ao discurso do partido antes das eleições para a Presidência, trazem à memória a alegoria sobre o poder de George Orwell. A história do livro "A Revolução dos Bichos", publicado pela primeira vez em 1945, na Inglaterra, é de impressionante semelhança com a realidade do Brasil de hoje.
Na ficção orwelliana, os animais da Granja do Solar se revoltam, expulsam o dono e instituem uma sociedade na qual todos terão direitos iguais. Os sete mandamentos, escritos na parede com tinta branca, determinam que a nova ordem não permite aos animais repetir comportamentos e hábitos dos homens, até então os detentores do poder. As máximas defendidas calorosamente pelos revolucionários vão sendo modificadas aos poucos pela espécie que assume o poder, até quando, no fim do conto, não é mais possível fazer distinção entre eles e os homens.
Na realidade brasileira, as eleições substituem a revolução. Podemos identificar não apenas sete mas uma série de mandamentos petistas que vêm sendo apagados da parede nestes primeiros cinco meses de governo. Na política econômica, são muitos os exemplos. As "taxas de juros civilizadas" anunciadas no programa de governo, em 2002, como mecanismo para estimular o "investimento produtivo e o crescimento", tornaram-se as mais altas já praticadas no país desde janeiro de 1999. A decisão do Copom de manter os juros em 26,5% torna distante a prometida retomada do crescimento econômico e da oferta de emprego. A pressa da velha oposição acabou. O ministro do Planejamento, Guido Mantega, pediu "paciência" e disse que os juros vão cair quando chegar o "momento certo".
Some-se a isso a proposta de independência do Banco Central, a decisão de não corrigir a tabela do IR (Imposto de Renda) e o aumento da CSLL (Contribuição Social sobre o Lucro Líquido) das empresas prestadoras de serviço, de 12% para 32% -esta última por meio da medida provisória 107. As contradições do partido recém-chegado ao poder são tantas que o ministro Tarso Genro, secretário especial do Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social, ensaiou um mea culpa em artigo publicado no mês de março. "Para nós, duros críticos do governo anterior, não é fácil adotar as medidas que seriam as mesmas aceitas pelo ex-ministro Pedro Malan, agora originárias das nossas próprias mãos", afirmou.
Na disputa dos bichos pelo poder na Granja do Solar, o líder Napoleão expulsa o adversário, que defendia a construção de um moinho de vento para produzir energia e mudar tudo para melhor. Semanas depois, convoca todos a se empenhar na obra do moinho que combatera. Explicação: tudo não passou de tática para derrotar o concorrente. Lá pelos lados da Granja do Torto, a situação foi semelhante. O presidente da Câmara dos Deputados, João Paulo Cunha (PT-SP), admitiu que o partido só foi contrário às reformas propostas por Fernando Henrique Cardoso porque tinha de fazer oposição: seu objetivo era o poder. O bombardeio de críticas dos aliados sobre o presidente da Câmara só não foi maior do que a reação petista contra os chamados radicais.
Por se recusarem a seguir a orientação de bancada para votar a favor da proposta de reforma previdenciária, a senadora Heloísa Helena (AL) e o deputado João Batista de Araújo, o Babá (PA), estão sendo ameaçados de expulsão do PT. A mensagem do governo repete os argumentos da proposta de reforma apresentada pela administração anterior em seu ponto mais polêmico: a taxação dos inativos, até então duramente combatida pelos petistas. Os deputados João Fontes (SE) e Luciana Genro (RS) foram afastados por tempo indeterminado, punidos por divulgar uma fita de vídeo, de setembro de 1987, em que Lula critica o estabelecimento de uma idade mínima para a aposentadoria.
Depois que Napoleão assume o poder na "Revolução dos Bichos", são abolidas as reuniões de debates, substituídas por encontros em que os moradores da granja se limitam a receber ordens superiores. "A lealdade e a obediência são mais importantes", explicam os líderes, ao desclassificar o antigo aliado expulso com a mudança das regras. Na crise interna do PT, a "deslealdade" e a "desobediência" têm nome: delito de opinião, crime pelo qual os parlamentares dissonantes serão julgados pelo Conselho de Ética. Julgamento com decisão prévia, se levadas ao pé da letra as palavras do ministro José Dirceu ditas durante reunião com a bancada de senadores. Para ele, a punição é uma "decisão irreversível" do Conselho.
Na obra de Orwell, os líderes aos poucos reinventam a história e apagam os antigos mandamentos da parede, removendo todos os sinais da utopia que fundamentou a revolução. Dos sete mandamentos, resta apenas um, com nova redação. À máxima "Todos os animais são iguais" acrescentou-se: "Mas alguns animais são mais iguais do que os outros". Basta rememorar os acontecimentos para perceber que não há distinção entre a política econômica e as práticas políticas adotadas hoje e ontem. Como na fábula dos bichos, a desesperadora tentativa do PT agora é apagar a memória do que disseram e fizeram seus personagens e justificar passado e presente com promessas de moinhos de vento.


Francisco de Almeida e Silva é secretário municipal de Fazenda do Rio de Janeiro.

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