São Paulo, segunda-feira, 23 de agosto de 2004

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OPINIÃO ECONÔMICA

Vôo de galinha

MARCOS CINTRA

A atividade produtiva brasileira possui uma característica peculiar: vem sendo marcada por espasmos de expansão e retração, como demonstrado no gráfico nesta página. É provável que o crescimento atual -que, aliás, não é tão marcante quanto se propaga, por ter como base o medíocre desempenho de 2003- seja mais um vôo de galinha, de curto alcance.
Os dados mais recentes da conjuntura atual mostram algumas características interessantes.
Em primeiro lugar, o surto de crescimento é puxado basicamente pelas exportações, ainda que alguns indicadores já mostrem que a expansão dos setores exportadores já começa a afetar positivamente o potencial consumidor do mercado interno.
Se o dinamismo do setor externo não for transmitido ao mercado interno, o país continuará dependente da conjuntura internacional, sobre a qual não detém nenhum controle. Estará se relegando a segundo plano o maior potencial da economia brasileira, qual seja o seu mercado interno potencial.
Em segundo lugar, esse curtíssimo surto de expansão, que ainda não chegou a completar seu primeiro ano, praticamente já esgotou a capacidade produtiva de alguns setores. Já existem gargalos em segmentos como o de suprimento de autopeças e aço. Em breve eles surgirão em setores estratégicos, como energia elétrica, logística de transportes e armazenamento e capacidade portuária.
Em terceiro lugar é possível observar que os investimentos no Brasil ainda estão sendo fortemente desestimulados pelo sistema tributário e pelo custo do capital. Em outras palavras, a ausência de condições que estimulem a formação de capital será sempre uma espada de Dâmocles pendendo sobre o setor produtivo brasileiro e que a qualquer momento pode decepar qualquer pretensão de crescimento econômico de médio e longo prazo. Dados da Anefac mostram que os juros anuais cobrados das empresas em julho de 2004 foram em média de 63% para capital de giro (pico de 296%), de 58% para desconto de duplicata (pico de 449%), de 60% para o desconto de cheque e de 100% para conta garantida (pico de 342%).
Nesse sentido, cumpre apontar que o alto custo do dinheiro é o principal obstáculo a ser superado para garantir um processo de crescimento auto-sustentado. Não se trata apenas de falta de política industrial ou de falta de planejamento. Isso também ocorre. Mas a grande carência ainda reside na ausência de condições microeconômicas que lubrifiquem as engrenagens da economia e propiciem condições operacionais viáveis e duradouras de expansão.
Se o governo, até o momento, vem mostrando um conjunto de significativas realizações do ponto de vista macroeconômico, falta que se lhes dêem continuidade com medidas microeconômicas sólidas. Sem a seqüência de uma política institucional interna de crescimento, será inevitável a continuidade da atual política de fortes restrições monetárias e fiscais. O risco é que os sacrifícios exigidos da sociedade brasileira se tornem insuportáveis, comprometendo sua estabilidade social.
Reduzir o custo do capital e estimular o crescimento da capacidade produtiva é tarefa primordial. O país continua refém do setor bancário e financeiro, que impõe "spreads" bancários absurdamente elevados sobre a taxa de juros básica. Os juros ao tomador estrangulam a capacidade produtiva nacional, concentram renda e geram desemprego.
Quando o Copom, por razões competentemente explicitadas em suas atas, mantém a taxa Selic nos atuais patamares, o faz para preservar as condições macroeconômicas que logrou obter nos últimos anos, ou seja, para manter a integridade do "triângulo intocável" composto pelo controle da inflação, contenção do crescimento da dívida pública e obtenção de equilíbrio nas contas correntes do balanço de pagamentos. Esses resultados não podem ser colocados sob qualquer risco.
Maria Clara do Prado, no último dia 19, em sua coluna no "Valor", indaga: "Por que será que o Brasil não consegue crescer um milímetro sem o risco da volta da inflação?". Essa pergunta é também uma resposta aos que tentam entender o porquê do excessivo conservadorismo do Banco Central, que insiste em manter elevada a taxa de juros básica da economia. Trata-se da única âncora disponível. Soltá-la poderá fazer a economia desgarrar.
Por outro lado, se os "spreads" fossem razoáveis, como ocorre em outros países, a taxa de juro ao tomador não deveria ultrapassar 25% ou 30% ao ano, em vez das taxas pornográficas de 70% para as empresas e 140% para as pessoas físicas. Juros civilizados nos colocariam em condições de financiar investimentos produtivos e romper a corrente de transmissão do crescimento à inflação.
O governo já conseguiu obter condições macroeconômicas adequadas. Mas, se não souber aproveitar o empuxo para dar início ao ciclo de reformas microeconômicas, como a reforma tributária, previdenciária, política, agrária, do Judiciário e outras tantas, haverá razões para temer que o país continuará a alçar tão somente alguns risíveis vôos de galinha.


Marcos Cintra Cavalcanti de Albuquerque, 58, doutor pela Universidade Harvard, professor titular e vice-presidente da FGV, foi deputado federal (1999-2003). Atualmente é secretário das Finanças de São Bernardo do Campo. É autor de "A verdade sobre o Imposto Único" (LCTE, 2003). Escreve às segundas-feiras, a cada 15 dias, nesta coluna.

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