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ARTIGO
Persistentes desequilíbrios macroeconômicos são para quem pode
MAURÍCIO METRI
ESPECIAL PARA A FOLHA
Desde o início dos anos 80, os
Estados Unidos vêm apresentando uma crônica necessidade de financiamento externo (sucessivos déficits em conta corrente). Tais necessidades só não comprometeram seu desempenho
econômico recente (seus dois longos ciclos de crescimento, 1983-90
e 1992-2000, e sua atual recuperação) porque os EUA têm conseguido expandir seu endividamento com o resto do mundo.
Ao longo desses anos, a entrada
de capitais de curto prazo (hot
money) e de investimento direto
estrangeiro (IDE), atraídos pela
forte especulação em Bolsa, supriu as necessidades de financiamento externo dos EUA. No ano
de 2003, chegou-se à situação em
que, considerando todos os países
do mundo com déficits em conta
corrente, os dos EUA corresponderam por 76% do valor total.
Do ponto de vista fiscal (receita
versus despesas do governo), a
história não é muito diferente.
Com exceção dos três últimos
anos do governo Clinton, o setor
público sempre fechou suas contas no vermelho. Tal resultado
tem sido sustentado graças à
grande capacidade de endividamento do governo americano,
por meio da emissão de títulos da
dívida pública (U.S. Treasuries).
Para a maioria dos economistas
e de acordo com os padrões consagrados pelo FMI, os EUA já deveriam, há tempos, ter se defrontado com consideráveis dificuldades econômicas. Tais preocupações aumentam quando se considera o fato de que, nas últimas décadas, os fluxos de capitais financeiros internacionais passaram a
gozar de enorme liberdade. Ataques especulativos contra a moeda de qualquer país tornaram-se
mais prováveis, principalmente
contra a moeda daqueles países
cujos fundamentos macroeconômicos não são bons (déficit fiscal
e externo).
O que acontece normalmente
com os países que têm grande necessidade de financiamento externo, como foi o caso brasileiro
nos últimos anos? Esses países se
vêem compelidos a buscar saldos
comerciais mais expressivos (esforço exportador) e a utilizarem o
endividamento público como instrumento de estabilização econômica, por meio de sucessivas elevações nas suas taxas de juros,
com o propósito de atrair os capitais necessários ao financiamento
de suas contas externas.
Retira-se grande parte do potencial dos Estados nacionais para
realização de políticas públicas,
visto que o orçamento público,
por um lado, fica cada vez mais
comprometido com as já estruturais despesas financeiras (pagamento de juros) e, por outro lado,
a política monetária (taxa de juros) torna-se refém dos movimentos de capitais especulativos.
Há mais de duas décadas, no entanto, as necessidades de financiamento externo e do setor público para os EUA nunca foram
um problema. Capitais financeiros de todo o mundo, principalmente os especulativos, vêm lhes
permitindo financiar sem dificuldades a expansão do consumo
doméstico, do investimento privado e do gasto público. As autoridades norte-americanas desfrutam de enorme liberdade para a
condução de sua política econômica. Por que os EUA são uma exceção à regra?
Os agentes que operam nos
mercados internacionais depositam parte de sua riqueza financeira em ativos denominados em dólar dentro do sistema financeiro
dos EUA. E isso ocorre a despeito
das desvalorizações do dólar em
relação a outras moedas e ativos e
do crescente endividamento externo e fiscal. Na verdade, os movimentos de capitais atuam de
modo estabilizador para a economia norte-americana. Qual a razão para tanto?
O sistema financeiro dos Estados Unidos é o mais importante e
desenvolvido espaço de valorização e reprodução do capital financeiro internacional, e os títulos da
dívida pública norte-americana
são os mais nobres ativos financeiros do sistema, constituindo-se, por exemplo, como o principal
ativo das reservas dos Bancos
Centrais de todo o mundo. Desse
modo, o sistema financeiro dos
EUA e os U.S. Treasuries ajudam
a preservar o dólar como a mais
importante moeda de referência
mundial, ao mesmo tempo em
que permitem à economia americana captar os recursos para a
manutenção de seus crônicos desequilíbrios macroeconômicos.
Do ponto de vista dos agentes,
comprar ativos denominados em
dólar é importante porque lhes
permite acessar os mercados mais
líquidos e profundos, o que facilita as operações tanto para aqueles
que buscam proteção contra a
instabilidade dos mercados quanto para aqueles que buscam realizar lucros especulativos, antecipando-se aos movimentos dos
mercados.
Já os U.S. Treasuries funcionam
como autênticas quase-moedas
(substitutos muito próximos das
moedas nacionais) e como principal porto seguro do sistema internacional (mais importante reserva de valor). Em momentos de
grande instabilidade, quando os
agentes econômicos fazem valer
sua preferência pela liquidez,
grande parte do estoque de riqueza financeira do mundo se dirige
aos ativos mais líquidos e seguros,
dentre os quais o maior destaque
são os títulos da dívida pública
dos EUA. Os U.S. Treasuries são,
portanto, imprescindíveis à administração dos elevados riscos
privados de um sistema intrinsecamente instável.
O Fed (banco central dos EUA)
não precisa aumentar os juros a
fim de atrair os capitais para o financiamento de suas contas externas. Os fluxos financeiros de
curto prazo, que para a maioria
das economias nacionais são o
principal veículo de desestabilização, atuam de modo absolutamente distinto em relação aos
EUA. Na sua busca pelo mais importante espaço de valorização da
riqueza financeira (o sistema financeiro norte-americano) e pelo
mais nobre ativo do sistema (U.S.
Treasuries), os capitais financeiros acabam funcionando como
fiadores e patrocinadores da liberdade desfrutada pela economia norte-americana, cuja capacidade de endividamento não
guarda relação alguma com seus
fundamentos macroeconômicos.
Maurício Metri é doutorando em economia no Instituto de Economia da UFRJ
(Universidade Federal do Rio de Janeiro)
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