São Paulo, sábado, 23 de outubro de 2004

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ARTIGO

Persistentes desequilíbrios macroeconômicos são para quem pode

MAURÍCIO METRI
ESPECIAL PARA A FOLHA

Desde o início dos anos 80, os Estados Unidos vêm apresentando uma crônica necessidade de financiamento externo (sucessivos déficits em conta corrente). Tais necessidades só não comprometeram seu desempenho econômico recente (seus dois longos ciclos de crescimento, 1983-90 e 1992-2000, e sua atual recuperação) porque os EUA têm conseguido expandir seu endividamento com o resto do mundo.
Ao longo desses anos, a entrada de capitais de curto prazo (hot money) e de investimento direto estrangeiro (IDE), atraídos pela forte especulação em Bolsa, supriu as necessidades de financiamento externo dos EUA. No ano de 2003, chegou-se à situação em que, considerando todos os países do mundo com déficits em conta corrente, os dos EUA corresponderam por 76% do valor total.
Do ponto de vista fiscal (receita versus despesas do governo), a história não é muito diferente. Com exceção dos três últimos anos do governo Clinton, o setor público sempre fechou suas contas no vermelho. Tal resultado tem sido sustentado graças à grande capacidade de endividamento do governo americano, por meio da emissão de títulos da dívida pública (U.S. Treasuries).
Para a maioria dos economistas e de acordo com os padrões consagrados pelo FMI, os EUA já deveriam, há tempos, ter se defrontado com consideráveis dificuldades econômicas. Tais preocupações aumentam quando se considera o fato de que, nas últimas décadas, os fluxos de capitais financeiros internacionais passaram a gozar de enorme liberdade. Ataques especulativos contra a moeda de qualquer país tornaram-se mais prováveis, principalmente contra a moeda daqueles países cujos fundamentos macroeconômicos não são bons (déficit fiscal e externo).
O que acontece normalmente com os países que têm grande necessidade de financiamento externo, como foi o caso brasileiro nos últimos anos? Esses países se vêem compelidos a buscar saldos comerciais mais expressivos (esforço exportador) e a utilizarem o endividamento público como instrumento de estabilização econômica, por meio de sucessivas elevações nas suas taxas de juros, com o propósito de atrair os capitais necessários ao financiamento de suas contas externas.
Retira-se grande parte do potencial dos Estados nacionais para realização de políticas públicas, visto que o orçamento público, por um lado, fica cada vez mais comprometido com as já estruturais despesas financeiras (pagamento de juros) e, por outro lado, a política monetária (taxa de juros) torna-se refém dos movimentos de capitais especulativos.
Há mais de duas décadas, no entanto, as necessidades de financiamento externo e do setor público para os EUA nunca foram um problema. Capitais financeiros de todo o mundo, principalmente os especulativos, vêm lhes permitindo financiar sem dificuldades a expansão do consumo doméstico, do investimento privado e do gasto público. As autoridades norte-americanas desfrutam de enorme liberdade para a condução de sua política econômica. Por que os EUA são uma exceção à regra?
Os agentes que operam nos mercados internacionais depositam parte de sua riqueza financeira em ativos denominados em dólar dentro do sistema financeiro dos EUA. E isso ocorre a despeito das desvalorizações do dólar em relação a outras moedas e ativos e do crescente endividamento externo e fiscal. Na verdade, os movimentos de capitais atuam de modo estabilizador para a economia norte-americana. Qual a razão para tanto?
O sistema financeiro dos Estados Unidos é o mais importante e desenvolvido espaço de valorização e reprodução do capital financeiro internacional, e os títulos da dívida pública norte-americana são os mais nobres ativos financeiros do sistema, constituindo-se, por exemplo, como o principal ativo das reservas dos Bancos Centrais de todo o mundo. Desse modo, o sistema financeiro dos EUA e os U.S. Treasuries ajudam a preservar o dólar como a mais importante moeda de referência mundial, ao mesmo tempo em que permitem à economia americana captar os recursos para a manutenção de seus crônicos desequilíbrios macroeconômicos.
Do ponto de vista dos agentes, comprar ativos denominados em dólar é importante porque lhes permite acessar os mercados mais líquidos e profundos, o que facilita as operações tanto para aqueles que buscam proteção contra a instabilidade dos mercados quanto para aqueles que buscam realizar lucros especulativos, antecipando-se aos movimentos dos mercados.
Já os U.S. Treasuries funcionam como autênticas quase-moedas (substitutos muito próximos das moedas nacionais) e como principal porto seguro do sistema internacional (mais importante reserva de valor). Em momentos de grande instabilidade, quando os agentes econômicos fazem valer sua preferência pela liquidez, grande parte do estoque de riqueza financeira do mundo se dirige aos ativos mais líquidos e seguros, dentre os quais o maior destaque são os títulos da dívida pública dos EUA. Os U.S. Treasuries são, portanto, imprescindíveis à administração dos elevados riscos privados de um sistema intrinsecamente instável.
O Fed (banco central dos EUA) não precisa aumentar os juros a fim de atrair os capitais para o financiamento de suas contas externas. Os fluxos financeiros de curto prazo, que para a maioria das economias nacionais são o principal veículo de desestabilização, atuam de modo absolutamente distinto em relação aos EUA. Na sua busca pelo mais importante espaço de valorização da riqueza financeira (o sistema financeiro norte-americano) e pelo mais nobre ativo do sistema (U.S. Treasuries), os capitais financeiros acabam funcionando como fiadores e patrocinadores da liberdade desfrutada pela economia norte-americana, cuja capacidade de endividamento não guarda relação alguma com seus fundamentos macroeconômicos.


Maurício Metri é doutorando em economia no Instituto de Economia da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro)


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