São Paulo, domingo, 23 de novembro de 1997.




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OPINIÃO ECONÔMICA
Vulnerabilidade e reformas

RUBENS PENHA CYSNE
Não resta dúvida de que as oscilações de renda, emprego, riqueza, juros etc. desta nova fase do Plano Real podem gerar elevada perda de bem-estar para a população. Afinal, várias decisões foram tomadas nos últimos meses com base na pressuposição de empregos estáveis, de um certo valor do patrimônio em ações (no caso dos mais aquinhoados) e juros baixos, o que subitamente se inverteu. Nesse sentido, cabe uma pergunta: teria o Brasil se mostrado tão vulnerável às intempéries externas se as reformas já tivessem sido encaminhadas?
A pergunta parece demandar uma trivial resposta positiva, mas não há consenso. Há economistas de renome que, a despeito do fato de o Brasil ter liderado as oscilações das Bolsas de Valores em todo o mundo em alguns dos dias de crise, acham que os efeitos seriam praticamente os mesmos, com base no fato de que as reformas não teriam necessariamente impacto direto positivo sobre o fluxo de caixa do governo.
Tais analistas colocam a serenidade com que o Chile (apenas para citar um exemplo mais próximo, na América Latina) passou pela crise como decorrência de um processo de reformas que se iniciou há muito mais tempo. Impossível, segundo eles, de ser alcançado pelo Brasil apenas pela consecução das reformas no curto espaço de três anos após o Real.
Diz o ditado que "quando todos pensam igual é porque ninguém está pensando". Seria esse o caso daqueles que compõem o coro quase uníssono a favor das reformas? Achamos que não. Nesse caso, o consenso parece estar muito mais para a obviedade do que para a preguiça intelectual coletiva.
Para embasar a tese da falta de importância das reformas, argumenta-se que seriam lentos e pouco claros os seus efeitos sobre o déficit público. Em particular, considerando-se que já se arrecada hoje um nível recorde de impostos, argumenta-se que uma reforma tributária poderia, no curto prazo, elevar, ao invés de reduzir, o desequilíbrio das contas públicas.
Da mesma forma, a transição da Previdência para um regime de capitalização, o que se daria ao menos em parte no caso de uma reforma séria poderia implicar um desequilíbrio do sistema antigo, regido pelo sistema de repartição, aumentando ainda mais as dificuldades de caixa do governo.
Em adição, a reforma administrativa, ainda que fosse aprovada e possibilitasse demissões de funcionários estáveis, implicaria, segundo tais analistas, polpudas indenizações no primeiro ano de vigência, também com reflexos de curto prazo negativos sobre as contas públicas.
Embora algumas dessas premissas possam ser verdadeiras, há um "non-sequitur" em relação à conclusão de que o devido encaminhamento prévio das reformas não teria livrado o país da elevada vulnerabilidade em relação às crises externas nem do entrave fiscal ao crescimento sustentado.
O motivo mais imediato é que, se as reformas já tivessem sido efetuadas, não haveria por que se ater com tamanha ênfase à manutenção do preço do dólar em reais. O Banco Central já poderia ter deixado o câmbio flutuar com mais liberdade, e as suas oscilações refletiriam apenas variações de oferta e demanda de divisas -não, como faz crer o discurso oficial hoje em dia, a diferença entre a vida ou a morte do Real.
Com câmbio flutuante, não há ataque especulativo como hoje se define. Este apenas ocorre quando há expectativas de variações descontínuas do preço da divisa estrangeira, em função de um agente econômico (Banco Central) que fixa o seu preço e da queda de reservas abaixo de um certo nível crítico.
Se o câmbio flutua, as reservas não variam (ou variam na medida do desejado). O câmbio pode se desvalorizar. Mas as variações são mais contínuas, menos abruptas do que no caso de um ataque especulativo bem-sucedido (contra o Banco Central).
Ou seja, se as reformas já tivessem sido bem-sucedidas e o câmbio desmitificado, os investidores externos não teriam por que liquidar suas posições nas Bolsas com tamanha histeria em relação ao resto do mundo, devido ao temor de converter reais em dólares a um preço abruptamente mais caro. O risco da repercussão mundial permaneceria. Mas o risco cambial já poderia ter sido, ao menos em parte, absorvido ainda em sua fase mais tenra -se não na infância, pelo menos na adolescência.
O segundo motivo é que o raciocínio acima descrito, que associa a utilidade das reformas contra as crises apenas em função de seu impacto de curto prazo sobre o déficit público, está incorreto. O que interessa não é o tamanho do déficit, mas sim seu excesso em relação à capacidade de o governo se financiar fora do Banco Central. E essa capacidade de financiamento reflete a solvência de longo prazo, não o déficit de curto prazo do governo.
É o excesso do déficit sobre a capacidade de financiamento que impõe pressões sobre o crédito interno líquido, colocando o BC na encruzilhada entre a defesa da moeda doméstica e a necessidade de financiar o governo. A elevação dos ativos líquidos do BC contra o governo e o setor privado aumenta a percepção de defasagem cambial e de um possível sucesso em um ataque ao preço da divisa estrangeira, fixado pelo BC.
E é claro que os credores percebem que a capacidade de o governo honrar suas obrigações sem ter que recorrer ao Banco Central é positivamente correlacionada com as reformas. A demissão de funcionários pode onerar os cofres públicos durante um certo espaço de tempo, mas não indefinidamente.
Eles percebem também que, embora a carga tributária possa não aumentar em decorrência da reforma fiscal, as vinculações e repartições de receita entre as diferentes esferas da administração pública atualmente existentes poderiam ser revistas, com ganhos para o equacionamento da questão fiscal. Em adição, a consecução de uma vez por todas de uma reforma tributária, considerada necessária por todos, reduziria uma fonte permanente de incertezas quanto ao futuro das contas fiscais.
No que diz respeito à Previdência, a introdução de um regime de capitalização poderia elevar substancialmente a poupança privada, como ocorreu no Chile, possibilitando ampliação da base de financiamento público interno e externo (como diz Martin Feldstein, só recebe poupança de longo prazo aquele que também poupa o suficiente).
Há, além disso, que considerar os efeitos positivos dessa elevação de poupança interna e externa sobre o crescimento e a subsequente coleta de impostos, elevando a capacidade futura de o governo honrar suas dívidas.
Ou seja, embora as entradas e saídas de caixa do governo possam até ser negativamente afetadas no curto prazo pelas reformas, esse fato não pode ser utilizado em defesa da tese de que elas não teriam reduzido os reflexos sobre o Brasil das oscilações externas.
Na verdade, os argumentos aqui utilizados se aplicam de forma geral à retificação das análises macroeconômicas que exageram a importância dos desequilíbrios de curto prazo das contas públicas. Tal metodologia só faria sentido para países onde o setor público não dispusesse de crédito fora do Banco Central, o que não é o caso do Brasil. As variáveis realmente relevantes na análise fiscal são de natureza bem mais ampla.


Rubens Penha Cysne, 39, é diretor de pesquisa do Centro de Estudos de Reforma do Estado (Ceres) da Escola de Pós-Graduação em Economia da Fundação Getúlio Vargas (RJ).
E-mail: rubens@fgv.br



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