|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
OPINIÃO ECONÔMICA
Vulnerabilidade e reformas
RUBENS PENHA CYSNE
Não resta dúvida de que as
oscilações de renda, emprego,
riqueza, juros etc. desta nova
fase do Plano Real podem gerar
elevada perda de bem-estar para a população. Afinal, várias
decisões foram tomadas nos últimos meses com base na pressuposição de empregos estáveis,
de um certo valor do patrimônio em ações (no caso dos mais
aquinhoados) e juros baixos, o
que subitamente se inverteu.
Nesse sentido, cabe uma pergunta: teria o Brasil se mostrado tão vulnerável às intempéries externas se as reformas já
tivessem sido encaminhadas?
A pergunta parece demandar
uma trivial resposta positiva,
mas não há consenso. Há economistas de renome que, a despeito do fato de o Brasil ter liderado as oscilações das Bolsas de
Valores em todo o mundo em
alguns dos dias de crise, acham
que os efeitos seriam praticamente os mesmos, com base no
fato de que as reformas não teriam necessariamente impacto
direto positivo sobre o fluxo de
caixa do governo.
Tais analistas colocam a serenidade com que o Chile (apenas
para citar um exemplo mais
próximo, na América Latina)
passou pela crise como decorrência de um processo de reformas que se iniciou há muito
mais tempo. Impossível, segundo eles, de ser alcançado pelo
Brasil apenas pela consecução
das reformas no curto espaço de
três anos após o Real.
Diz o ditado que "quando todos pensam igual é porque ninguém está pensando". Seria esse
o caso daqueles que compõem o
coro quase uníssono a favor das
reformas? Achamos que não.
Nesse caso, o consenso parece
estar muito mais para a obviedade do que para a preguiça
intelectual coletiva.
Para embasar a tese da falta
de importância das reformas,
argumenta-se que seriam lentos
e pouco claros os seus efeitos
sobre o déficit público. Em particular, considerando-se que já
se arrecada hoje um nível recorde de impostos, argumenta-se
que uma reforma tributária poderia, no curto prazo, elevar, ao
invés de reduzir, o desequilíbrio
das contas públicas.
Da mesma forma, a transição
da Previdência para um regime
de capitalização, o que se daria
ao menos em parte no caso de
uma reforma séria poderia implicar um desequilíbrio do sistema antigo, regido pelo sistema
de repartição, aumentando
ainda mais as dificuldades de
caixa do governo.
Em adição, a reforma administrativa, ainda que fosse
aprovada e possibilitasse demissões de funcionários estáveis, implicaria, segundo tais
analistas, polpudas indenizações no primeiro ano de vigência, também com reflexos de
curto prazo negativos sobre as
contas públicas.
Embora algumas dessas premissas possam ser verdadeiras,
há um "non-sequitur" em relação à conclusão de que o devido encaminhamento prévio das
reformas não teria livrado o
país da elevada vulnerabilidade em relação às crises externas
nem do entrave fiscal ao crescimento sustentado.
O motivo mais imediato é
que, se as reformas já tivessem
sido efetuadas, não haveria por
que se ater com tamanha ênfase
à manutenção do preço do dólar em reais. O Banco Central já
poderia ter deixado o câmbio
flutuar com mais liberdade, e as
suas oscilações refletiriam apenas variações de oferta e demanda de divisas -não, como
faz crer o discurso oficial hoje
em dia, a diferença entre a vida
ou a morte do Real.
Com câmbio flutuante, não
há ataque especulativo como
hoje se define. Este apenas ocorre quando há expectativas de
variações descontínuas do preço da divisa estrangeira, em
função de um agente econômico
(Banco Central) que fixa o seu
preço e da queda de reservas
abaixo de um certo nível crítico.
Se o câmbio flutua, as reservas
não variam (ou variam na medida do desejado). O câmbio
pode se desvalorizar. Mas as variações são mais contínuas, menos abruptas do que no caso de
um ataque especulativo
bem-sucedido (contra o Banco
Central).
Ou seja, se as reformas já tivessem sido bem-sucedidas e o
câmbio desmitificado, os investidores externos não teriam por
que liquidar suas posições nas
Bolsas com tamanha histeria
em relação ao resto do mundo,
devido ao temor de converter
reais em dólares a um preço
abruptamente mais caro. O risco da repercussão mundial permaneceria. Mas o risco cambial
já poderia ter sido, ao menos
em parte, absorvido ainda em
sua fase mais tenra -se não na
infância, pelo menos na adolescência.
O segundo motivo é que o raciocínio acima descrito, que associa a utilidade das reformas
contra as crises apenas em função de seu impacto de curto
prazo sobre o déficit público,
está incorreto. O que interessa
não é o tamanho do déficit, mas
sim seu excesso em relação à
capacidade de o governo se financiar fora do Banco Central.
E essa capacidade de financiamento reflete a solvência de
longo prazo, não o déficit de
curto prazo do governo.
É o excesso do déficit sobre a
capacidade de financiamento
que impõe pressões sobre o crédito interno líquido, colocando
o BC na encruzilhada entre a
defesa da moeda doméstica e a
necessidade de financiar o governo. A elevação dos ativos líquidos do BC contra o governo
e o setor privado aumenta a
percepção de defasagem cambial e de um possível sucesso em
um ataque ao preço da divisa
estrangeira, fixado pelo BC.
E é claro que os credores percebem que a capacidade de o
governo honrar suas obrigações
sem ter que recorrer ao Banco
Central é positivamente correlacionada com as reformas. A
demissão de funcionários pode
onerar os cofres públicos durante um certo espaço de tempo, mas não indefinidamente.
Eles percebem também que,
embora a carga tributária possa
não aumentar em decorrência
da reforma fiscal, as vinculações e repartições de receita entre as diferentes esferas da administração pública atualmente existentes poderiam ser revistas, com ganhos para o equacionamento da questão fiscal. Em
adição, a consecução de uma
vez por todas de uma reforma
tributária, considerada necessária por todos, reduziria uma
fonte permanente de incertezas
quanto ao futuro das contas fiscais.
No que diz respeito à Previdência, a introdução de um regime de capitalização poderia
elevar substancialmente a poupança privada, como ocorreu
no Chile, possibilitando ampliação da base de financiamento público interno e externo
(como diz Martin Feldstein, só
recebe poupança de longo prazo
aquele que também poupa o suficiente).
Há, além disso, que considerar os efeitos positivos dessa elevação de poupança interna e
externa sobre o crescimento e a
subsequente coleta de impostos,
elevando a capacidade futura
de o governo honrar suas dívidas.
Ou seja, embora as entradas e
saídas de caixa do governo possam até ser negativamente afetadas no curto prazo pelas reformas, esse fato não pode ser
utilizado em defesa da tese de
que elas não teriam reduzido os
reflexos sobre o Brasil das oscilações externas.
Na verdade, os argumentos
aqui utilizados se aplicam de
forma geral à retificação das
análises macroeconômicas que
exageram a importância dos
desequilíbrios de curto prazo
das contas públicas. Tal metodologia só faria sentido para
países onde o setor público não
dispusesse de crédito fora do
Banco Central, o que não é o
caso do Brasil. As variáveis
realmente relevantes na análise
fiscal são de natureza bem mais
ampla.
Rubens Penha Cysne, 39, é diretor de pesquisa do Centro de Estudos de Reforma do
Estado (Ceres) da Escola de Pós-Graduação
em Economia da Fundação Getúlio Vargas
(RJ).
E-mail: rubens@fgv.br
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
|