São Paulo, quinta-feira, 24 de junho de 2004

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

OPINIÃO ECONÔMICA

Um artista da política

PAULO NOGUEIRA BATISTA JR.

Como varguista de quatro costados, não posso deixar de prestar a minha pequena homenagem a Leonel Brizola hoje. Perdemos nesta semana um brasileiro excepcional. Brizola assustava os donos do poder. E por quê? Fundamentalmente porque reunia duas qualidades raras na política brasileira (ou em qualquer política): a bravura e o uso inspirado da palavra.
Foi essa combinação que impediu o golpe militar em 1961, depois da renúncia de Jânio Quadros. Se Jango tivesse o estofo de Brizola, o golpe de 1964 não teria sido vitorioso -talvez nem tivesse sido tentado.
Brizola era um perigo, não há dúvida. Usava a televisão como poucos. Diria mesmo: como ninguém. Logo se percebia que ele era uma figura extraordinária. Pelas tiradas e frases de impacto. Por sua voz, gesticulação e olhar penetrante. Pelo humor. Pela modulação da sua fala, pelas ênfases e os silêncios, pela escolha das palavras e o recurso ocasional a termos inusitados. Nas suas palavras estava presente, com freqüência, um sopro daquilo que Fernando Pessoa chamou certa vez de "movimento hierático da nossa clara língua majestosa".
Mas a retórica de Brizola não era empolada nem baseada em erudição. Ele foi, essencialmente, um intuitivo, um emocional. Um artista, em suma.
Todo grande político tem que ter um pouco de artista. Sem esse traço não há como liderar e mobilizar. Nem como resgatar em cada um de nós a energia para superar os momentos difíceis que todas as nações atravessam.
Esse nosso artista não foi muito celebrado. Não teve e não quis ter vida fácil. O seu acesso aos meios de comunicação, à televisão em especial, era sempre rigorosamente controlado e racionado. "Et pour cause." Passava por longos períodos de exílio interno. "Mandaram-me para a Sibéria", dizia ele.
Na terça-feira à noite, todos os telejornais derramaram-se em louvações a Brizola. Foi o tema principal em todos os canais. Lembrei-me do comentário sarcástico de Machado de Assis: "Está morto. Podemos elogiá-lo à vontade".
Brizola não terá sucessores. É natural. Fenômenos não fazem escola. O político de hoje é, em geral, uma espécie de "produto", disponível no "mercado eleitoral". Reinam a mediocridade e a rotina. Não há inspiração, nem entusiasmo, nem coragem. E a língua portuguesa padece.
As qualidades de Brizola não eram, evidentemente, resultado da cuidadosa fabricação de marqueteiros. O seu brilho irradiava lá do fundo do seu caráter e dos seus impulsos vitais. A sua força motriz era uma ligação apaixonada com o Brasil. Ora, para o político brasileiro normal, o Brasil simplesmente não existe.
Sintomático o que aconteceu no velório de Brizola no Rio de Janeiro, anteontem. O presidente da República resolveu comparecer. Foi recebido com vaias e gritos de "traidor". Passou por um momento de grande constrangimento. "Brizola, presente, é o nosso presidente", clamavam em coro centenas de pessoas. Lula ficou alguns poucos minutos e se retirou por recomendação da segurança, que temia o rompimento do cordão de isolamento.
Vamos dizer a verdade: Lula teve o que mereceu. Que presidente é esse que não pode comparecer ao velório de um antigo aliado e companheiro de lutas, sem ser hostilizado e correr risco de agressão?
Se Brizola tivesse feito um último apelo ao presidente da República, poderia ter dito, imagino: "Não faças, Lula, um governo medíocre e acovardado. Não foi para isso que o Brasil te elegeu".


Paulo Nogueira Batista Jr., 49, economista e professor da FGV-EAESP, escreve às quintas-feiras nesta coluna. É autor do livro "A Economia como Ela É..." (Boitempo Editorial, 3ª edição, 2002).
E-mail - pnbjr@attglobal.net


Texto Anterior: PIB fraco trava fluxo, diz analista
Próximo Texto: Luís Nassif: A retomada do projeto nacional
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.