São Paulo, domingo, 24 de outubro de 2004

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ALTA BIOTECNOLOGIA

Empresas recebem investimentos a fim de injetar ciência no agronegócio, filão de pesquisa para o país

Brasil corre para pegar o "trem verde"

Renato Stockler/Folha Imagem
Funcionária atua no laboratório da Alellyx, empresa de biotecnologia para pesquisa e desenvolvimento no setor de agronegócio


MARCELO LEITE
COLUNISTA DA FOLHA

A estrela da nascente indústria brasileira de biotecnologia de ponta tem nome (Alellyx), sobrenome (Reinach) e padrinhos (Votorantim e Fapesp).
Criada há dois anos e sete meses, a empresa está testando soluções para a morte súbita dos citros, uma das maiores dores de cabeça dos plantadores de laranja. Se conseguir, será um sinal forte de que o Brasil pode, enfim, conseguir embarcar num trem da alta tecnologia, o verde.
A morte súbita já vitimou mais de 3 milhões de árvores em São Paulo e Minas Gerais, região de onde sai metade do suco de laranja do mundo. A doença por ora afetou só 1% dos pés de laranja, mas é devastadora. Quando se instala, a planta seca até morrer, em questão de dias. Uma cura, ou o desenvolvimento de plantas resistentes, teria um enorme mercado pela frente.
Para os estrategistas da alta biotecnologia brasileira -como o biólogo molecular Fernando de Castro Reinach, 48, presidente interino da Alellyx e diretor-executivo da Votorantim Novos Negócios-, essa é a vocação do país na área de inovação: injetar tecnologia no agronegócio. É a chamada biotecnologia verde.
Os outros dois ramos, vermelho (saúde) e branco (polímeros para a indústria), são até mais promissores, como negócio, e por isso mesmo mais concorridos. Americanos e europeus despejam neles bilhões para pesquisa e desenvolvimento (P&D). São eles que alimentam as projeções de um mercado mundial de até US$ 800 bilhões nos próximos dez anos.
Por ora, só as 1.400 empresas dos Estados Unidos faturam quase US$ 40 bilhões por ano, segundo a revista "Business Week". No Brasil, um levantamento do setor realizado em 2001 pela Fundação Biominas apontou 354 empresas, com faturamento anual estimado em R$ 9 bilhões. Mas aí estavam incluídas todas as biotecnologias, e não tanto aquelas diretamente associadas com a ciência do século 21, a engenharia genética.

Biotecnologias pioneiras
Foi com base na biotecnologia tradicional, aliás, que se construiu a grande história de sucesso brasileiro no setor.
A empresa Biobrás, criada em Minas, em 1976, surgiu para produzir enzimas, como as do coalho empregado na indústria de laticínios. Passou em seguida para a produção de insulina por métodos tradicionais e logo dominaria a tecnologia de produção de insulina humana por técnicas de engenharia genética (em 2002, a Biobrás teve seu controle acionário adquirido pela companhia dinamarquesa Novo Nordisk).
Essa capacidade de manipular genes e construir organismos -plantas ou animais- com finalidade produtiva específica tem potencial para revolucionar a indústria, como ocorreu com a eletricidade e a eletrônica no século 20. "O barco da matéria inanimada o Brasil perdeu", diz Reinach. "Não é líder em nada."
Com ele concorda o físico José Fernando Perez, 60, que está deixando o disputado cargo de diretor científico da Fapesp (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo) para se lançar como empresário. "É uma das poucas áreas de alta tecnologia em que o Brasil pode ingressar e dar o salto no momento certo."
Perez e Reinach estiveram juntos no Projeto Genoma Xylella bancado pela Fapesp, tido e havido como o maior sucesso da ciência brasileira na última década. Uma rede de dezenas de laboratórios seqüenciou (transcreveu) o DNA da bactéria Xylella fastidiosa, causadora da doença dos citros conhecida como amarelinho. Virou capa da publicação científica britânica "Nature", em julho de 2000 -exatamente o ano do Projeto Genoma Humano.
Foi daí que nasceu a empresa Alellyx, como sugere seu nome -um palíndromo quase perfeito de Xylella. Ela foi criada por cinco cientistas da rede Onsa (sigla bem-humorada obtida da versão inglesa de Organização para Seqüenciamento e Análise de Nucleotídeos). Todos eles originários das três universidades estaduais paulistas, USP, Unicamp e Unesp: Ana Claudia Rasera da Silva, Paulo Arruda, Jesus Aparecido Ferro, João Paulo Kitajima e João Carlos Setubal (este último já desligado da empresa).
Tampouco é coincidência a predileção pelos citros. A estratégia científica já prenunciava a econômica: buscar um nicho com menos concorrentes, a genômica de patógenos de plantas. Um palco tecnocientífico em que o Brasil pudesse brilhar.

Primeiros produtos
De posse das informações genéticas do parasita da laranja, a Alellyx obteve um de seus primeiros produtos: um teste para diagnosticar, com precisão molecular, a presença da bactéria do amarelinho na planta.
O mesmo já foi feito para o vírus CSDV, da morte súbita, mas não é com isso que a empresa sediada em Campinas pretende ganhar dinheiro de verdade. O teste do CDSV, diz Reinach, dá "uma miséria de retorno".
Rendimento sério, mesmo, só virá com uma vacina para mudas, por exemplo, ou com a obtenção de plantas geneticamente modificadas para resistir ao vírus. Os testes já estão em curso, mas a doença tem um período de incubação de dois a três anos. Não há como abreviar esses ritmos da vida.
Para ser rigoroso, nem a prova definitiva de que o CDSV causa a morte súbita pôde ainda ser 100% obtida, pois é preciso esperar para ver se a inoculação de plantas sadias vai de fato resultar em infecção e morte.
Cinco a oito anos para uma empresa de biotecnologia dar lucro é um prazo considerado normal. Alta tecnologia é sinônimo de alto risco. Só decola com investidores como a Votorantim Ventures (VV), o braço da Votorantim Novos Negócios (VNN) que dispõe de US$ 300 milhões para esse tipo de aposta (cuja margem de acerto, costuma-se dizer, é de 1 para 10, ou pior). "É parecido com o ciclo de desenvolvimento de remédios", diz Reinach.

Faltam projetos e anjos
Por ora, só um terço do capital de risco da VV foi investido. A Alellyx recebeu US$ 15 milhões, em março de 2002, e outros aportes que a VNN não divulga. A CanaVialis, empresa de genômica criada após o seqüenciamento parcial da cana-de-açúcar, recebeu US$ 8 milhões em março de 2003. O grosso do fundo, cerca de 40%, é aplicado em empresas de tecnologia da informação (TI); 30% vão para biotecnologia agrícola, e outros 30%, para serviços como call center.
Segundo Reinach, a VV examina a média de um projeto por dia. A maioria ainda é incipiente demais, distante do estágio de maturidade em que o investidor de risco se dispõe a entrar. Segundo Perez, da Fapesp, falta ao setor de pesquisa nacional -onde surgem as dezenas de idéias das quais pode resultar um ou outro produto- justamente a figura do empreendedor, pessoas capazes de vestir adequadamente a idéia do cientista para o baile do mercado de risco.
Esse papel de estilista, fora do Brasil, é assumido por investidores ainda mais propensos ao risco, os chamados "angels". Na definição de Perez, "são os caras que não vão a Las Vegas" (preferem a emoção de apostar em alta tecnologia no berço).
Eles dão ao pesquisador neófito em negócios o apoio financeiro para aproximar sua idéia de um protótipo ou escala aceitáveis para os "venture capitalists". Na sua opinião, é o que mais faz falta ao Brasil no momento.

Aposta no vermelho
O diretor científico da Fapesp tem tanta fé no diagnóstico que pretende ganhar dinheiro com ele, identificando projetos que possam atrair tanto anjos quanto investidores de risco.
Como deve permanecer no cargo até a virada do ano, diz que não está se dedicando à futura PPD Tecnologia (PPD de "Perez Pesquisa e Desenvolvimento") e que por isso não tem investidores alinhados. Não pode falar, conclui, das idéias que já tem em mente. Diz que isso só virá a público em meados de 2005.
Fora da Fapesp, a aposta é que ele tentará fazer decolar alguns projetos na área de biotecnologia vermelha, como genômica aplicada à saúde humana.
Perez não confirma nem nega a possibilidade. Mas fala com carinho manifesto de resultados de outro projeto genoma da Fapesp, em parceria com o Instituto Ludwig de Pesquisa sobre o Câncer, para identificar genes ativos em tumores humanos (informação que já está sendo usada no desenvolvimento de testes diagnósticos inovadores).
Não faltam entraves, contudo, no caminho brasileiro do trem verde (ou vermelho) de alta biotecnologia. Eles podem ser resumidos na expressão usual: marco regulatório.
No campo do agronegócio, claro, a famigerada Lei de Biossegurança. A vocação das empresas de base genômica é virarem fábricas de transgênicos -como uma variedade de cana resistente a herbicida, que já se encontra na pauta da CTNBio (Comissão Técnica Nacional de Biossegurança), ou uma laranja resistente ao vírus da morte súbita.
Perez identifica também problemas por resolver nas regras de relacionamento de pesquisadores de instituições públicas com empresas (objeto da Lei de Inovação) e na questão da biodiversidade brasileira (Lei de Acesso a Recursos Genéticos), ambas em tramitação no Congresso.
Ele diz ser "curioso" que a biotecnologia não tenha sido incluída entre as prioridades de inovação na política industrial do governo Lula, ao lado de software, microeletrônica, indústria de base e serviços de tecnologia de informação.
Por outro lado, recebeu como uma boa nova a criação em setembro, pelo governo federal, do Fórum de Competitividade em Biotecnologia. Anunciada pelo Ministério da Ciência e Tecnologia (MCT), a iniciativa abre a possibilidade de canalizar mais agilmente para o setor recursos de fundos setoriais como o de Biotecnologia (R$ 22,8 milhões em 2004) e o Verde-Amarelo (R$ 213,6 milhões).

Vantagens no setor
Assim como Reinach, Perez considera que o país tem muito mais vantagens comparativas na alta biotecnologia do que nesses outros setores. Primeiro, pelo próprio peso da agropecuária na economia. Depois, pela massa crítica já obtida aqui pela genômica verde, pelo acervo de biodiversidade e pelo potencial único do Brasil para expansão da área agricultável (terras e água).
Para o diretor da Votorantim, já se evidencia uma "enorme pressão" mundial para o Brasil aumentar sua produção agropecuária. Reinach diz que isso poderá ser feito com destruição ambiental, à custa por exemplo de desmatamento na Amazônia, ou com aumento de produtividade, via tecnificação crescente do agronegócio.
Ele defende que a ministra Marina Silva deveria apostar, como ele, no segundo cavalo: "A única opção do ambiente é a tecnologia", afirmou.


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