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OPINIÃO ECONÔMICA
Um presente de Natal
PAULO RABELLO DE CASTRO
"Acredito em Lula", disse
ele, em tom calmo, mas
assertivo, com a segurança dos
seus 83 anos bem vividos. "E sou
otimista com o Brasil", completou, para dar a explicação do não-partidarismo da sua afirmação.
Aliás, a ordem das crenças e da
confiança era, primeiro, o futuro
do Brasil e, dentro desse futuro, a
possibilidade de sucesso do atual
presidente. "Mas, para isso acontecer", ressalvou, para completar
o argumento, "os políticos bem
que poderiam ser menos egoístas
e construir um ambiente mais favorável ao desenvolvimento de
cada família, de cada comunidade, até chegar à nação." "Creio ser
a família a base de tudo, onde tudo se apóia. Foi nisso que apostei
sempre."
O depoimento emocionante do
patriarca da família Ling e presidente do conselho de sua empresa
aos seus colaboradores -funcionários, diretores e conselheiros-
encerrava mais um ano de bastante sucesso, apesar do clima recessivo, num evento reunindo
mais de cem participantes.
Era uma manhã esplendorosa
de sol que inundava Porto Alegre
de bons presságios para 2004.
E nós, que lá estávamos, ganhávamos um presente especial de
Natal por meio daquele depoimento de toda uma vida do migrante chinês Sheun Ming Ling,
que aqui chegou há mais de 50
anos com "uma mão na frente e
outra atrás", sem saber que destino lhe reservaria a sorte que antes
não lhe sorrira na velha China
desde quando, aos 14 anos, órfão
de pai, fora obrigado a trocar o estudo pelo trabalho precoce.
A aposta naquele Brasil dos
anos 50 era apenas mais um lance
na vida aparentemente sem porto
nem destino de um emigrado sem
nenhum capital para tocar a vida,
muito menos um projeto empresarial.
Mas, como num desses pequenos milagres que se desfiam com
sutileza ao longo do tempo, a vida
de Sheun foi sendo brindada pelas
boas coincidências do destino. Os
amigos lhe ofereceram trabalho.
O trabalho o regalou com oportunidades. Essas lhe trouxeram
uma mulher como nenhuma outra, a família, a fortuna. Sheun
trabalhava duro todos os dias,
sem exceção. Sempre com um
olho no negócio e outro na comunidade. As carências do seu semelhante eram uma oportunidade
de ajudar, organizar e, por isso,
ganhar: assim foi com o negócio
da soja em Santa Rosa, com a introdução do porco-carne, com a
grande indústria de óleo de cozinha, com os reflorestamentos,
com a pecuária de corte e com a
avicultura, com a transformação
de plásticos e com as embalagens.
Sheun acabou devolvendo ao
Brasil cada uma das oportunidades que teve sob a forma de ações
concretas, mobilizadoras de talentos e criadoras de milhares de
empregos no Sul, no Nordeste, no
Norte, no Sudeste e no Centro-Oeste. Foi assim que Sheun avançou e conquistou sua terra de adoção.
O depoimento de Sheun Ming
Ling, já agora enfeitado de eternidade, teve a generosidade de ressaltar as intensas possibilidades
do futuro, mais além do seu próprio. Esse renascer por meio do
verbo, que é expressão máxima
da mensagem cristã do Natal,
coincide com a visão, por muitos
considerada otimista, de que o futuro do Brasil ainda pode ser resgatado da atual quadra de mediocridade.
A crença de Sheun em Lula
guarda um traço inevitável de
identificação recíproca do migrante de uma terra tão distante
com o migrante de terra bem próxima. Ambos foram feitos da mesma argamassa de negações iniciais e de uma resistência quase
infinita, cuja tenacidade e persistência incomuns os fizeram percorrer aquele metro a mais que
marca a fronteira entre a obscuridade e a glória.
Mas também há diferenças. Um
empreendedor é um fazedor por
conta própria, enquanto um político é um animador do fazer dos
outros, tarefa bem mais ingrata
por ser o organizador do ambiente onde as iniciativas acontecem
(ou deixam de acontecer). Resgatar o Brasil de sua mediocridade
exigirá do político reformular o
ambiente hostil aos empreendimentos, avesso ao acontecer da
produção, indiferente aos apelos
da massa que busca os empregos.
Mas o desenvolvimento não se
faz apenas com palavras. As atitudes mentais precisam mudar.
E, com elas, os modos e as iniciativas de governo. Hoje o governo
governa para si, para se financiar,
para se pagar, para se perpetuar
sobre os ombros arqueados da sociedade. Por isso crescemos tão
pouco. Por isso não temos metas
de crescimento, temos medo do
crescimento.
Com mais crescimento, dizem
os novos sábios, não dá para fechar as contas do governo. Por isso os juros devem ser os mais altos
do mundo e os tributos os mais escorchantes do planeta. E assim ficamos, adoradores do nosso próprio umbigo...
No ano que vem, lembrava
Sheun, quando Lula visitar a China, o Brasil inteiro poderá conhecer um país que soube se resgatar
do ópio da desesperança e da estagnação. Mas também nesse caso há sensíveis diferenças, como
observava Sheun, conversando
comigo.
"O Brasil", dizia ele, "tem um
patrimônio natural como nenhum outro no mundo. É um presente para nós. Poderíamos desenvolvê-lo muito mais rápido se
tivéssemos vontade de apressar o
passo. Mas, infelizmente, o Brasil
não precisa... Esse é o problema!"
Sheun encontrou, afinal, a vertente contemporânea de Fernando Pessoa ao convocar os lusitanos ao risco e à ousadia no verso
"Navegar é preciso, viver não é
preciso".
Na interpretação confuciana de
Sheun, nosso presente de Natal
deste ano seria aprendermos que
"Precisar é preciso!".
Paulo Rabello de Castro, 54, doutor em
economia pela Universidade de Chicago
(EUA), é vice-presidente do Instituto
Atlântico e chairman da SR Rating, agência brasileira de classificação de riscos de
crédito. Escreve às quartas-feiras, a cada
15 dias, nesta coluna.
E-mail -
rabellodecastro@uol.com.br
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