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São Paulo, quarta-feira, 24 de dezembro de 2003

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OPINIÃO ECONÔMICA

Um presente de Natal

PAULO RABELLO DE CASTRO

"Acredito em Lula", disse ele, em tom calmo, mas assertivo, com a segurança dos seus 83 anos bem vividos. "E sou otimista com o Brasil", completou, para dar a explicação do não-partidarismo da sua afirmação. Aliás, a ordem das crenças e da confiança era, primeiro, o futuro do Brasil e, dentro desse futuro, a possibilidade de sucesso do atual presidente. "Mas, para isso acontecer", ressalvou, para completar o argumento, "os políticos bem que poderiam ser menos egoístas e construir um ambiente mais favorável ao desenvolvimento de cada família, de cada comunidade, até chegar à nação." "Creio ser a família a base de tudo, onde tudo se apóia. Foi nisso que apostei sempre."
O depoimento emocionante do patriarca da família Ling e presidente do conselho de sua empresa aos seus colaboradores -funcionários, diretores e conselheiros- encerrava mais um ano de bastante sucesso, apesar do clima recessivo, num evento reunindo mais de cem participantes.
Era uma manhã esplendorosa de sol que inundava Porto Alegre de bons presságios para 2004.
E nós, que lá estávamos, ganhávamos um presente especial de Natal por meio daquele depoimento de toda uma vida do migrante chinês Sheun Ming Ling, que aqui chegou há mais de 50 anos com "uma mão na frente e outra atrás", sem saber que destino lhe reservaria a sorte que antes não lhe sorrira na velha China desde quando, aos 14 anos, órfão de pai, fora obrigado a trocar o estudo pelo trabalho precoce.
A aposta naquele Brasil dos anos 50 era apenas mais um lance na vida aparentemente sem porto nem destino de um emigrado sem nenhum capital para tocar a vida, muito menos um projeto empresarial.
Mas, como num desses pequenos milagres que se desfiam com sutileza ao longo do tempo, a vida de Sheun foi sendo brindada pelas boas coincidências do destino. Os amigos lhe ofereceram trabalho. O trabalho o regalou com oportunidades. Essas lhe trouxeram uma mulher como nenhuma outra, a família, a fortuna. Sheun trabalhava duro todos os dias, sem exceção. Sempre com um olho no negócio e outro na comunidade. As carências do seu semelhante eram uma oportunidade de ajudar, organizar e, por isso, ganhar: assim foi com o negócio da soja em Santa Rosa, com a introdução do porco-carne, com a grande indústria de óleo de cozinha, com os reflorestamentos, com a pecuária de corte e com a avicultura, com a transformação de plásticos e com as embalagens.
Sheun acabou devolvendo ao Brasil cada uma das oportunidades que teve sob a forma de ações concretas, mobilizadoras de talentos e criadoras de milhares de empregos no Sul, no Nordeste, no Norte, no Sudeste e no Centro-Oeste. Foi assim que Sheun avançou e conquistou sua terra de adoção.
O depoimento de Sheun Ming Ling, já agora enfeitado de eternidade, teve a generosidade de ressaltar as intensas possibilidades do futuro, mais além do seu próprio. Esse renascer por meio do verbo, que é expressão máxima da mensagem cristã do Natal, coincide com a visão, por muitos considerada otimista, de que o futuro do Brasil ainda pode ser resgatado da atual quadra de mediocridade.
A crença de Sheun em Lula guarda um traço inevitável de identificação recíproca do migrante de uma terra tão distante com o migrante de terra bem próxima. Ambos foram feitos da mesma argamassa de negações iniciais e de uma resistência quase infinita, cuja tenacidade e persistência incomuns os fizeram percorrer aquele metro a mais que marca a fronteira entre a obscuridade e a glória.
Mas também há diferenças. Um empreendedor é um fazedor por conta própria, enquanto um político é um animador do fazer dos outros, tarefa bem mais ingrata por ser o organizador do ambiente onde as iniciativas acontecem (ou deixam de acontecer). Resgatar o Brasil de sua mediocridade exigirá do político reformular o ambiente hostil aos empreendimentos, avesso ao acontecer da produção, indiferente aos apelos da massa que busca os empregos.
Mas o desenvolvimento não se faz apenas com palavras. As atitudes mentais precisam mudar. E, com elas, os modos e as iniciativas de governo. Hoje o governo governa para si, para se financiar, para se pagar, para se perpetuar sobre os ombros arqueados da sociedade. Por isso crescemos tão pouco. Por isso não temos metas de crescimento, temos medo do crescimento.
Com mais crescimento, dizem os novos sábios, não dá para fechar as contas do governo. Por isso os juros devem ser os mais altos do mundo e os tributos os mais escorchantes do planeta. E assim ficamos, adoradores do nosso próprio umbigo...
No ano que vem, lembrava Sheun, quando Lula visitar a China, o Brasil inteiro poderá conhecer um país que soube se resgatar do ópio da desesperança e da estagnação. Mas também nesse caso há sensíveis diferenças, como observava Sheun, conversando comigo.
"O Brasil", dizia ele, "tem um patrimônio natural como nenhum outro no mundo. É um presente para nós. Poderíamos desenvolvê-lo muito mais rápido se tivéssemos vontade de apressar o passo. Mas, infelizmente, o Brasil não precisa... Esse é o problema!"
Sheun encontrou, afinal, a vertente contemporânea de Fernando Pessoa ao convocar os lusitanos ao risco e à ousadia no verso "Navegar é preciso, viver não é preciso".
Na interpretação confuciana de Sheun, nosso presente de Natal deste ano seria aprendermos que "Precisar é preciso!".


Paulo Rabello de Castro, 54, doutor em economia pela Universidade de Chicago (EUA), é vice-presidente do Instituto Atlântico e chairman da SR Rating, agência brasileira de classificação de riscos de crédito. Escreve às quartas-feiras, a cada 15 dias, nesta coluna.

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