São Paulo, domingo, 25 de junho de 2006

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

RUBENS RICUPERO

Gato por lebre


Se não mudarmos as premissas da negociação comercial, teremos de comer gato e pagar a conta da lebre

O GOVERNO repete nas negociações comerciais o mesmo erro que cometeu com a Bolívia: concorda com as premissas do adversário, esperando poder escapar à sua desastrosa conseqüência. Nas negociações comerciais, aceita de forma tácita que tudo depende de barganha igualitária: os ricos fariam concessões em agricultura em troca de concessões em serviços e produtos industriais da parte de países como o Brasil e a Índia.
É tão maciço o bombardeio pela imprensa e os líderes mundiais dessa mensagem de aparência simples que até o próprio presidente a engoliu em dois de seus programas de rádio. Com a aproximação de data decisiva nas tratativas da OMC (Organização Mundial do Comércio) e da reunião do G8 em São Petersburgo, é de temer algum irremediável desatino do Brasil, inspirado pelo pecado original da atual diplomacia presidencial: a busca imoderada de protagonismo e glorificação pessoal. Não é preciso lembrar que, em véspera de eleições, a loucura pode às vezes ter método.
O problema dessa premissa é sua irresgatável falsidade. A Rodada Doha da OMC foi denominada de "Rodada do Desenvolvimento" porque seu objetivo era o de "redress the imbalances and injustices" do sistema mundial de comércio, isto é, "compensar, corrigir, reequilibrar" os desequilíbrios e injustiças do sistema. Reconhecia-se que, ao excluir a agricultura por mais de 50 anos, o sistema havia causado sério e persistente prejuízo aos países pobres e eficientes em produção agrícola. Chegara, portanto, o momento de compensá-los pelas perdas, e não de exigir-lhes pagar preço adicional pela compensação devida.
O principal desequilíbrio e injustiça em agricultura não se situa nas tarifas, mas nos subsídios à produção interna e às exportações. Subsídios são distorções da concorrência, adulterações da competição, análogas aos delitos em direito penal. Não tem cabimento exigir que se recompense alguém para abrir mão de prática incorreta e desleal. Da mesma forma, não tem sentido querer que paguemos para que os ricos deixem de gastar US$ 280 bilhões anuais para falsear a concorrência agrícola. Aliás, os subsídios industriais estão proibidos há décadas, e o Brasil nada recebeu quando foi obrigado a suspendê-los.
Restam as tarifas e outras barreiras. As dos ricos em agricultura chegam a porcentagens astronômicas, 500% ou mais, nos casos de cotas-tarifas. Nem de longe se comparam à proteção modesta dos mercados industriais e de serviços dos subdesenvolvidos. Tome-se o exemplo do Brasil. Criou-se aqui a mitologia de que somos um dos países mais protecionistas do mundo. O que mostram, porém, os números do mais recente estudo sobre o assunto, o boletim "Comércio Exterior em Perspectiva", de março-abril, elaborado pela magnífica equipe técnica da CNI (Confederação Nacional da Indústria)?
1) A tarifa média nominal era em 1990 de 43% e baixou em 2005 a 10,7%;
2) a alíquota média efetivamente paga em 2005, após as isenções, foi de 4,35%;
3) a média para produtos industriais é de 10,8%, superior apenas à da China, à da Coréia do Sul e à da Rússia; a nominal mexicana é de 15,1%, embora a efetiva seja menor graças às isenções de acordos comerciais;
4) a mais alta tarifa nominal é de 35%, aplicada a automóveis e apenas a seis outros produtos do setor de calçados, alhos e sorbitol;
5) na comparação com nove expressivas economias em desenvolvimento (África do Sul, China, Coréia do Sul, Índia, México, Rússia, Tailândia, Venezuela e Vietnã), o estudo conclui que o Brasil tem média relativamente baixa, superior à russa, próxima à da África do Sul e à da China e inferior à dos demais.
Chama a atenção que a média mais elevada é a da Índia, de 29,9%, quase três vezes a nossa. Como o Brasil tem o nome associado ao da Índia nas cobranças internacionais, recomenda a prudência deixar claro que se trata de situação diferente. A Índia saberá defender-se como sempre fez e, além disso, não vai querer pagar muito pois seu interesse em agricultura é mais tático do que real.
O Brasil, com interesse genuíno na liberalização agrícola, precisa fazer conhecer os números e não ter vergonha de dizer que temos direito a compensação pelas distorções do sistema. Se não mudarmos as premissas da negociação, vamos ter de comer gato e pagar a conta da lebre.


RUBENS RICUPERO , 69, diretor da Faculdade de Economia da Faap e do Instituto Fernand Braudel de São Paulo, foi secretário-geral da Unctad (Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento) e ministro da Fazenda (governo Itamar Franco). Escreve quinzenalmente, aos domingos, nesta coluna.


Texto Anterior: Sorteio da Globo na Copa é investigado
Próximo Texto: Outro lado: Globo diz que visa explorar novo mercado para celular
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.