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RUBENS RICUPERO
Gato por lebre
Se não mudarmos as
premissas da negociação
comercial, teremos de comer
gato e pagar a conta da lebre
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O GOVERNO repete nas negociações comerciais o mesmo
erro que cometeu com a Bolívia: concorda com as premissas do
adversário, esperando poder escapar à sua desastrosa conseqüência.
Nas negociações comerciais, aceita
de forma tácita que tudo depende de
barganha igualitária: os ricos fariam
concessões em agricultura em troca
de concessões em serviços e produtos industriais da parte de países como o Brasil e a Índia.
É tão maciço o bombardeio pela
imprensa e os líderes mundiais dessa mensagem de aparência simples
que até o próprio presidente a engoliu em dois de seus programas de rádio. Com a aproximação de data decisiva nas tratativas da OMC (Organização Mundial do Comércio) e da
reunião do G8 em São Petersburgo,
é de temer algum irremediável desatino do Brasil, inspirado pelo pecado
original da atual diplomacia presidencial: a busca imoderada de protagonismo e glorificação pessoal.
Não é preciso lembrar que, em véspera de eleições, a loucura pode às
vezes ter método.
O problema dessa premissa é sua
irresgatável falsidade. A Rodada Doha da OMC foi denominada de "Rodada do Desenvolvimento" porque
seu objetivo era o de "redress the
imbalances and injustices" do sistema mundial de comércio, isto é,
"compensar, corrigir, reequilibrar"
os desequilíbrios e injustiças do sistema. Reconhecia-se que, ao excluir
a agricultura por mais de 50 anos, o
sistema havia causado sério e persistente prejuízo aos países pobres e
eficientes em produção agrícola.
Chegara, portanto, o momento de
compensá-los pelas perdas, e não de
exigir-lhes pagar preço adicional pela compensação devida.
O principal desequilíbrio e injustiça em agricultura não se situa nas tarifas, mas nos subsídios à produção
interna e às exportações. Subsídios
são distorções da concorrência,
adulterações da competição, análogas aos delitos em direito penal. Não
tem cabimento exigir que se recompense alguém para abrir mão de prática incorreta e desleal. Da mesma
forma, não tem sentido querer que
paguemos para que os ricos deixem
de gastar US$ 280 bilhões anuais para falsear a concorrência agrícola.
Aliás, os subsídios industriais estão
proibidos há décadas, e o Brasil nada
recebeu quando foi obrigado a suspendê-los.
Restam as tarifas e outras barreiras. As dos ricos em agricultura chegam a porcentagens astronômicas,
500% ou mais, nos casos de cotas-tarifas. Nem de longe se comparam
à proteção modesta dos mercados
industriais e de serviços dos subdesenvolvidos. Tome-se o exemplo do
Brasil. Criou-se aqui a mitologia de
que somos um dos países mais protecionistas do mundo. O que mostram, porém, os números do mais
recente estudo sobre o assunto, o
boletim "Comércio Exterior em
Perspectiva", de março-abril, elaborado pela magnífica equipe técnica
da CNI (Confederação Nacional da
Indústria)?
1) A tarifa média nominal era em
1990 de 43% e baixou em 2005 a
10,7%;
2) a alíquota média efetivamente
paga em 2005, após as isenções, foi
de 4,35%;
3) a média para produtos industriais é de 10,8%, superior apenas à
da China, à da Coréia do Sul e à da
Rússia; a nominal mexicana é de
15,1%, embora a efetiva seja menor
graças às isenções de acordos comerciais;
4) a mais alta tarifa nominal é de
35%, aplicada a automóveis e apenas
a seis outros produtos do setor de
calçados, alhos e sorbitol;
5) na comparação com nove expressivas economias em desenvolvimento (África do Sul, China, Coréia
do Sul, Índia, México, Rússia, Tailândia, Venezuela e Vietnã), o estudo conclui que o Brasil tem média
relativamente baixa, superior à russa, próxima à da África do Sul e à da
China e inferior à dos demais.
Chama a atenção que a média
mais elevada é a da Índia, de 29,9%,
quase três vezes a nossa. Como o
Brasil tem o nome associado ao da
Índia nas cobranças internacionais,
recomenda a prudência deixar claro
que se trata de situação diferente. A
Índia saberá defender-se como sempre fez e, além disso, não vai querer
pagar muito pois seu interesse em
agricultura é mais tático do que real.
O Brasil, com interesse genuíno
na liberalização agrícola, precisa fazer conhecer os números e não ter
vergonha de dizer que temos direito
a compensação pelas distorções do
sistema. Se não mudarmos as premissas da negociação, vamos ter de
comer gato e pagar a conta da lebre.
RUBENS RICUPERO , 69, diretor da Faculdade de Economia
da Faap e do Instituto Fernand Braudel de São Paulo, foi secretário-geral da Unctad (Conferência das Nações Unidas
sobre Comércio e Desenvolvimento) e ministro da Fazenda
(governo Itamar Franco). Escreve quinzenalmente, aos domingos, nesta coluna.
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