São Paulo, segunda-feira, 25 de novembro de 2002

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ARTIGO

Por que é tão difícil consertar os defeitos do capitalismo moderno

MARTIN WOLF
DO "FINANCIAL TIMES"

A história relembrará a década passada como uma "atrocidade" no que tange à remuneração dos executivos de primeiro escalão dos EUA. Esse é o veredicto de Robert Monks e Allen Sykes, dois críticos do capitalismo anglo-americano contemporâneo. Ao longo da década de 90, os executivos de primeiro escalão desviaram uma riqueza espantosa dos acionistas da corporação para os seus bolsos. A maior bolha nos mercados de ações da história do país explica boa parte da questão. Mas defeitos já antigos no sistema de governança corporativa também tiveram seu papel. O desafio é enfrentar a busca de soluções funcionais.
Alan Greenspan, presidente do Fed, classificou o que aconteceu de "ganância infecciosa". Eu prefiro o adjetivo "obsceno". Uma investigação conduzida pelo "Financial Times" concluiu que importantes executivos haviam extraído US$ 3,3 bilhões de empresas que eles levaram à falência. Mas os barões da bancarrota são os exemplos extremos.
O comportamento indevido tem se espalhado. Abarca a concessão de opções de ações sem vínculo para com o desempenho dos executivos; a subversão de padrões contábeis e de auditoria; e uma série de tomadas de controle acionário altamente destrutivas do valor das empresas envolvidas.
A exuberância irracional fomenta o excesso. Quando o público acredita em qualquer coisa, os executivos conseguem realizar quase tudo, sem obstáculos. Isso seria muito mais difícil agora, porque os investidores desiludidos não crêem em quase nada. Por algum tempo, administradores, contadores e até banqueiros de investimento têm motivos para se comportar da melhor forma possível. Mas a correção que eles começam a exibir está longe de ser suficiente. O que houve nos últimos anos reflete mais que a alta das Bolsas. E não se trata, tampouco, de alguns maus elementos contaminando um bom ambiente. Em seu cerne, argumentam Monks e Sykes, o capitalismo não tem propriedade efetiva.
A razão para que seja tão difícil remediar esses defeitos é que eles são a imagem invertida do maior sucesso do capitalismo anglo-americano: o casamento entre corporações controladas pela iniciativa privada e posse disseminada de ações. Os economistas classificam as dificuldades que abalam esse modelo como "relação principal-agente", "informação assimétrica" e "ação coletiva". O problema da relação principal-agente é a dificuldade em controlar as pessoas a quem se concede o poder de agir em nosso nome. A dificuldade da informação assimétrica é o acesso privilegiado dos agentes definidos acima à informação. E o desafio da ação coletiva deriva dos casos em que terceiros viajem de carona nos esforços de alguém. Monks e Sykes resumem esses pontos sob três categorias: prestação de contas insuficiente; falta de transparência; e falhas institucionais.
Tudo é agravado ainda mais pela pletora de conflitos de interesse: os conglomerados financeiros estão mais preocupados em satisfazer os administradores das corporações do que com a maximização do valor dos fundos que controlam; os diretores externos devem mais lealdade aos executivos que os selecionam do que aos acionistas que representam; e os contadores e os auditores devem mais às pessoas que os empregam do que aos investidores que dependem de seu trabalho.

Os seis poderes indevidos
Para aumentar a precisão das acusações, os autores listam seis poderes indevidos de que desfrutam os executivos das corporações. A saber, o direito de escolher conselheiros supostamente independentes; o de selecionar auditores também em tese isentos; o de determinar os consultores de remuneração; o de desencorajar os curadores de fundos de pensão a exercer papel ativo na governança corporativa; o de exercer poderes de beneficência com relação aos executivos de fundos de investimento dos conglomerados financeiros com que suas empresas se relacionam; e o de desencorajar intervenção externa na forma de assessoria aos conselheiros quanto aos méritos de propostas de tomada de controle acionário.
As propostas que eles oferecem se concentram na ausência de propriedade efetiva. Cabe aos governos estabelecer o princípio de que uma presença efetiva dos acionistas nas empresas é de interesse nacional. Os governos deveriam legislar de modo a garantir que os curadores de fundos de pensão ajam só no interesse de longo prazo de seus beneficiários. Deveriam responsabilizar os acionistas institucionais pelo exercício do direito de voto. E deveriam conceder aos acionistas o direito e a obrigação exclusivos de nomear os conselheiros das empresas.

Como proprietários
Monks e Sykes acreditam que essas sugestões forçariam os intermediários financeiros a agir como proprietários. Esperam que surjam novas instituições, que eles classificam como "investidores especializados" e "de relacionamento". Os primeiros seriam fundos de investimento que deteriam participações substanciais em número limitado de empresas. Os segundos amalgamariam os votos de diversas administradoras de fundos com o objetivo de exercer mais influência sobre as companhias. Ambas seriam regulamentadas de modo a garantir ganhos relativos a uma propriedade bem informada.
Essas propostas funcionariam? Continuo cético, porque não vejo de que maneira qualquer conjunto de leis possa forçar os intermediários a agir de maneira responsável perante os proprietários mal informados. Os conflitos de interesse que os afligem são excessivos. Por isso, outras mudanças deveriam ser consideradas. Em especial, as auditorias deveriam ser financiadas com verbas fornecidas pelas Bolsas em que as ações das empresas sejam negociadas. Esses mercados responderiam pela escolha dos auditores. Os contadores deveriam ser impedidos de fornecer quaisquer outros serviços às empresas que auditam; um organismo independente, semelhante a um banco central autônomo, deve responder pelos padrões contábeis.

Sensatez
Todos os incentivos tributários e contábeis à concessão de opções de ações deveriam ser eliminados. O pagamento em ações restritas é muito mais sensato. Se as propostas de Monks e Sykes forem aplicadas e funcionarem, a remuneração deveria ser estabelecida por um comitê de conselheiros indicado pelos acionistas.
Mas será que essas mudanças resolveriam de vez os problemas da governança corporativa? A resposta é necessariamente "não". O objetivo precisa ser mais limitado a restringir a extensão do domínio dos executivos. É preciso que a contabilidade seja tratada de maneira sã, que haja auditorias independentes e mais pressão sobre os intermediários para que ajam no interesse dos beneficiários. As respostas jamais serão perfeitas. Mas isso não é desculpa para deixar tudo como está.


Tradução de Paulo Migliacci

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