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LUÍS NASSIF
O cientista-cantor de São Paulo
Meu Deus , como parece
que foi ontem! Ao abrir a
caixa de CDs "Acertos de Contas", de Paulo Vanzolini, trinta
anos de São Paulo me invadiram o coração. De repente, estava lá o bar do Alemão inteiro,
como que saído das brumas do
viaduto Antártica, em noite de
garoa paulistana.
Estava lá a referência maior
para mim, naquela Sampa de
1970 e poucos, Vanzolini sentado à mesa, dando atenção até
para jovens focas como eu. E da
caixa saiam as vozes de Eduardo Gudim e Carlinhos Vergueiro, do meu amigo João Macacão, os bandolins de Izaias, Moretti e João Macambira, os vários instrumentos do Miltinho
Tachina, os sete cordas do Zé
Barbeiro, do Israel e do Luizinho, os cavaquinhos do Lúcio e
do Joãozinho Torto, o sopro de
Stanley e Prata, todos os que se
reuniam em torno da mesa 8 do
bar.
Naquele início dos anos 70,
embora imensa, São Paulo ainda não tinha adquirido a impessoalidade da grande metrópole que é hoje. O ambiente era
mais íntimo, solidário, em parte
porque músicos, intelectuais e
jornalistas pareciam segregados
na grande noite do AI 5, freqüentando os mesmos ambientes, solidários no mesmo silêncio.
Cheguei a São Paulo, pastei,
demorei a enturmar até que conheci o Alemão e os barzinhos
da dr. Vila Nova, ainda com os
ecos das grandes batalhas políticas dos anos anteriores. Mas
apenas os ecos. À noite a gente
saía para tomar chopp no Alemão ou no Sem-nome. O sonho
oculto de todos nós, jovens interioranos sonhando com a capital, era ficar amigo da boemia
intelectualizada da época, o
pessoal que freqüentava o Jogral
e a casa do professor Sérgio
Buarque de Hollanda, que era
amigo do Chico e dos seus amigos. Nessas rodas todas, a referência maior era Vanzolini.
Sua música entrou em minha
vida em 1964, quando Noite
Ilustrada explodiu no firmamento musical do samba cantando "O Neguinho e a Senhorita" (Noel Rosa de Oliveira e
Abelardo da Silva) e "Volta por
Cima", de Vanzolini.
"Ronda", só se imporia como
o grande clássico da dor-de-cotovelo no final dos anos 70,
quando regravado por Márcia,
em um show histórico com
Eduardo Gudin e Paulo César
Pinheiro. Mesmo antes disso, os
sambas de Vanzolini já eram referência obrigatória da noite
paulistana. Varávamos noites,
aliás, discutindo quem era o
compositor paulistano por excelência, se Adoniran ou Vanzolini. E nunca chegávamos a uma
conclusão.
Nem conto a emoção que me
deu, em um dos primeiros trabalhos, ao ser incumbido de entrevistar o Vanzolini para uma
matéria sobre a morte de Luiz
Carlos Paraná o criador do bar
"O Jogral", marco da noite de
São Paulo.
Fui para o Museu do Ipiranga,
onde o mestre trabalhava, e me
apresentei. Ele me cumprimentou secamente, mandou sentar
em uma cadeira e ficou trabalhando. Às seis horas parou, tirou o avental, o boêmio baixou
no cientista, pegou uma garrafa
de cachaça de cima do armário,
encheu o copo, tomou quase tudo e me deixou o restinho. Fez
isso mais quatro vezes. Saí de lá
bebinho, com os restos da cachaça e das histórias de Vanzolini.
Nos anos 80, um LP da gravadora Eldorado conseguiu sintetizar a imensidão da obra de
Vanzolini, o "Samba Erudito",
"A Praça Clóvis", o "Maria que
ninguém queria", "Boca da Noite", com Toquinho, entre outras
obras-primas.
Depois, quando passei a estudar os temas fundamentais da
construção do país, Vanzolini
voltou a aparecer, como pesquisador de reputação internacional e como um dos pais da Fapesp, a Fundação de Amparo à
Ciência do Estado de São Paulo.
Em certo momento do governo Fleury, um pessoal amigo
meu, mas muito chegado nas
manobras políticas, tentou tirar
Vanzolini da Fapesp. Virei um
leão em defesa do mestre. Em
parte, defendia a história da
ciência. Em parte, defendia a
confraria do bar do Alemão.
No aniversário de São Paulo,
poucas pessoas deram à cidade
o que Vanzolini deu. Ele foi a
síntese perfeita do homem da
noite e das ciências, da São Paulo que constrói de dia e da cidade que, de noite, destila versos
de puro Vanzolini através do
frio da sua garoa.
E-mail - LNassif@uol.com.br
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