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São Paulo, domingo, 26 de janeiro de 2003

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LUÍS NASSIF

O cientista-cantor de São Paulo

Meu Deus , como parece que foi ontem! Ao abrir a caixa de CDs "Acertos de Contas", de Paulo Vanzolini, trinta anos de São Paulo me invadiram o coração. De repente, estava lá o bar do Alemão inteiro, como que saído das brumas do viaduto Antártica, em noite de garoa paulistana.
Estava lá a referência maior para mim, naquela Sampa de 1970 e poucos, Vanzolini sentado à mesa, dando atenção até para jovens focas como eu. E da caixa saiam as vozes de Eduardo Gudim e Carlinhos Vergueiro, do meu amigo João Macacão, os bandolins de Izaias, Moretti e João Macambira, os vários instrumentos do Miltinho Tachina, os sete cordas do Zé Barbeiro, do Israel e do Luizinho, os cavaquinhos do Lúcio e do Joãozinho Torto, o sopro de Stanley e Prata, todos os que se reuniam em torno da mesa 8 do bar.
Naquele início dos anos 70, embora imensa, São Paulo ainda não tinha adquirido a impessoalidade da grande metrópole que é hoje. O ambiente era mais íntimo, solidário, em parte porque músicos, intelectuais e jornalistas pareciam segregados na grande noite do AI 5, freqüentando os mesmos ambientes, solidários no mesmo silêncio.
Cheguei a São Paulo, pastei, demorei a enturmar até que conheci o Alemão e os barzinhos da dr. Vila Nova, ainda com os ecos das grandes batalhas políticas dos anos anteriores. Mas apenas os ecos. À noite a gente saía para tomar chopp no Alemão ou no Sem-nome. O sonho oculto de todos nós, jovens interioranos sonhando com a capital, era ficar amigo da boemia intelectualizada da época, o pessoal que freqüentava o Jogral e a casa do professor Sérgio Buarque de Hollanda, que era amigo do Chico e dos seus amigos. Nessas rodas todas, a referência maior era Vanzolini.
Sua música entrou em minha vida em 1964, quando Noite Ilustrada explodiu no firmamento musical do samba cantando "O Neguinho e a Senhorita" (Noel Rosa de Oliveira e Abelardo da Silva) e "Volta por Cima", de Vanzolini.
"Ronda", só se imporia como o grande clássico da dor-de-cotovelo no final dos anos 70, quando regravado por Márcia, em um show histórico com Eduardo Gudin e Paulo César Pinheiro. Mesmo antes disso, os sambas de Vanzolini já eram referência obrigatória da noite paulistana. Varávamos noites, aliás, discutindo quem era o compositor paulistano por excelência, se Adoniran ou Vanzolini. E nunca chegávamos a uma conclusão.
Nem conto a emoção que me deu, em um dos primeiros trabalhos, ao ser incumbido de entrevistar o Vanzolini para uma matéria sobre a morte de Luiz Carlos Paraná o criador do bar "O Jogral", marco da noite de São Paulo.
Fui para o Museu do Ipiranga, onde o mestre trabalhava, e me apresentei. Ele me cumprimentou secamente, mandou sentar em uma cadeira e ficou trabalhando. Às seis horas parou, tirou o avental, o boêmio baixou no cientista, pegou uma garrafa de cachaça de cima do armário, encheu o copo, tomou quase tudo e me deixou o restinho. Fez isso mais quatro vezes. Saí de lá bebinho, com os restos da cachaça e das histórias de Vanzolini.
Nos anos 80, um LP da gravadora Eldorado conseguiu sintetizar a imensidão da obra de Vanzolini, o "Samba Erudito", "A Praça Clóvis", o "Maria que ninguém queria", "Boca da Noite", com Toquinho, entre outras obras-primas.
Depois, quando passei a estudar os temas fundamentais da construção do país, Vanzolini voltou a aparecer, como pesquisador de reputação internacional e como um dos pais da Fapesp, a Fundação de Amparo à Ciência do Estado de São Paulo.
Em certo momento do governo Fleury, um pessoal amigo meu, mas muito chegado nas manobras políticas, tentou tirar Vanzolini da Fapesp. Virei um leão em defesa do mestre. Em parte, defendia a história da ciência. Em parte, defendia a confraria do bar do Alemão.
No aniversário de São Paulo, poucas pessoas deram à cidade o que Vanzolini deu. Ele foi a síntese perfeita do homem da noite e das ciências, da São Paulo que constrói de dia e da cidade que, de noite, destila versos de puro Vanzolini através do frio da sua garoa.

E-mail - LNassif@uol.com.br


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