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OPINIÃO ECONÔMICA
O falso temor da moratória da dívida interna
MAILSON DA NÓBREGA
O destaque dado às acusações
levianas de Paul Krugman a Armínio Fraga acabou obscurecendo a origem da imprudência:
um boato de que, com Fraga,
não haveria moratória da dívida interna. O tema continua,
contudo, excitando analistas e
investidores.
O medo de que estivesse para
acontecer a versão mais radical
da moratória, a do sequestro ou
confisco de poupanças, contribuiu para o quase pânico que levou incautos brasileiros a sacar
depósitos e aplicações na sexta-feira negra do último 29 de janeiro.
O presidente Menem também
meteu sua colher nesse angu.
Propôs, irresponsavelmente,
que o Brasil copiasse o seu Plano
Bonex, o precedente argentino
do sequestro do Plano Collor.
Alguns analistas já incluem a
moratória da dívida interna ou
o sequestro em seus cenários, o
que me parece no mínimo um
exagero, revelador do desconhecimento da realidade brasileira.
Um desses cenários se baseia
em lições dos livros-texto, que
dizem o seguinte: quando os investidores percebem que a dívida ficará impagável, recusam-se
a financiá-la. Sem alternativa, o
governo emite dinheiro. É o que
se chama monetização da dívida pública.
O raciocínio segue: a emissão
descontrolada de moeda provoca inflação ou hiperinflação,
causando enormes perdas aos
detentores de títulos da dívida
pública. Na hiperinflação alemã
de 1923, os investidores perderam praticamente tudo.
No caso brasileiro, diz a tese,
os juros altos causarão a recusa
dos investidores em financiar a
dívida pública. Se o analista é
estrangeiro, teme também a repetição da amarga experiência
que muitos tiveram com a moratória russa.
Esse raciocínio livresco não é
aplicável ao Brasil porque (1) os
investidores somente perdem
com a monetização quando detêm títulos prefixados (aqui cerca de 98% da dívida pública federal é pós-fixada com base na
taxa cambial ou em índices de
preços) e (2) a nossa dívida é totalmente resgatável em moeda
nacional (parte da dívida russa
deveria ser paga em divisas).
Assim, se as incertezas aumentarem, a monetização se dará,
como no final dos anos 80, por
uma moeda indexada à taxa de
juros. O título que exerceu essa
função naquela época, a Letra
Financeira do Tesouro -LFT,
ainda está em vigor.
Uma outra diferença em relação à Alemanha de 1923 é que o
governo tem o poder de obrigar
os investidores institucionais a
aplicar parte de seu portfólio em
papéis da dívida pública. O giro
diário no "overnight", que torna
possível a monetização à brasileira, não era possível na Alemanha. O computador não havia sido inventado.
O sequestro de ativos ocorreu
em países europeus após a Segunda Guerra. A medida extrema se justificou pelo excesso de
emissão monetária a que foram
levados pelo conflito. É provável
que essas experiências tenham
servido de inspiração para o
Plano Collor.
Na Europa e no Brasil havia
uma certa legitimidade para a
violência do sequestro. Não é caso agora entre nós. E, mesmo
que acontecesse, teria poucas
chances de prosperar.
Preliminarmente, cabe lembrar que a parte mais expressiva
da dívida pública é detida por
fundos de investimento e fundos
de pensão. São milhares de quotistas e participantes. Isso exigiria o estabelecimento de inúmeras exceções, como se viu no Plano Collor (lembrar as "torneirinhas").
Estados e municípios, partidos
políticos, embaixadas, organizações religiosas, hospitais beneficentes e outros ficariam a
salvo do sequestro. Imediatamente, o mercado criaria
"swaps" e outros produtos para
permitir o desbloqueio dos recursos.
O governo poderia dar o calote
via leilão de reais para atender
os que precisassem de liquidez
ou desconfiassem da devolução
dos seus recursos. Aí, tal como
no Plano Bonex, haveria gigantescos deságios. Nem mesmo no
Plano Collor essa alternativa foi
utilizada.
Dessa vez, a Justiça muito provavelmente acolheria ações de
inconstitucionalidade da medida. No Plano Collor, sentenças
para liberação dos recursos
ocorreram aos milhares em instâncias inferiores, mas foram
derrubadas nos tribunais superiores, que por certo não queriam ser vistos como causadores
do colapso do plano.
Agora, a Justiça já sabe que,
diferentemente do que se dizia,
o sequestro não resolveu os problemas do país. O governo seria
condenado em milhões de ações
em todas as instâncias.
A memória dos desacertos do
sequestro do Plano Collor está
muito viva no Ministério da Fazenda e no Banco Central. Mesmo que o presidente da República, em um acesso de doidice,
quisesse embarcar na aventura,
enfrentaria severa resistência
da burocracia.
Se a loucura prevalecesse sobre
o bom senso, o presidente poderia enfrentar um processo de impeachment. Se, mesmo assim, a
coisa prosseguisse, seria também um completo desastre político. A traição gravíssima ao
eleitorado conduziria Fernando
Henrique ao lixo da história.
Dir-se-á que a monetização à
brasileira nos levaria a impasses
conhecidos. É verdade. Mas, até
chegarmos a tanto, muito teria
ainda que acontecer.
Até chegarmos a esse ponto,
precisaria que tudo ou quase tudo desse errado. Se fosse o caso,
o eventual fracasso do Plano
Real poderia criar as condições
políticas para enfrentarmos de
vez os nossos conhecidos problemas estruturais. E, aí, adeus
moratória ou medo dela.
Mailson da Nóbrega, 56, ex-ministro da Fazenda (governo José Sarney), sócio da Tendências Consultoria Integrada, escreve às sextas-feiras nesta coluna.
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