São Paulo, Sexta-feira, 26 de Fevereiro de 1999
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

OPINIÃO ECONÔMICA

O falso temor da moratória da dívida interna

MAILSON DA NÓBREGA

O destaque dado às acusações levianas de Paul Krugman a Armínio Fraga acabou obscurecendo a origem da imprudência: um boato de que, com Fraga, não haveria moratória da dívida interna. O tema continua, contudo, excitando analistas e investidores.
O medo de que estivesse para acontecer a versão mais radical da moratória, a do sequestro ou confisco de poupanças, contribuiu para o quase pânico que levou incautos brasileiros a sacar depósitos e aplicações na sexta-feira negra do último 29 de janeiro.
O presidente Menem também meteu sua colher nesse angu. Propôs, irresponsavelmente, que o Brasil copiasse o seu Plano Bonex, o precedente argentino do sequestro do Plano Collor.
Alguns analistas já incluem a moratória da dívida interna ou o sequestro em seus cenários, o que me parece no mínimo um exagero, revelador do desconhecimento da realidade brasileira.
Um desses cenários se baseia em lições dos livros-texto, que dizem o seguinte: quando os investidores percebem que a dívida ficará impagável, recusam-se a financiá-la. Sem alternativa, o governo emite dinheiro. É o que se chama monetização da dívida pública.
O raciocínio segue: a emissão descontrolada de moeda provoca inflação ou hiperinflação, causando enormes perdas aos detentores de títulos da dívida pública. Na hiperinflação alemã de 1923, os investidores perderam praticamente tudo.
No caso brasileiro, diz a tese, os juros altos causarão a recusa dos investidores em financiar a dívida pública. Se o analista é estrangeiro, teme também a repetição da amarga experiência que muitos tiveram com a moratória russa.
Esse raciocínio livresco não é aplicável ao Brasil porque (1) os investidores somente perdem com a monetização quando detêm títulos prefixados (aqui cerca de 98% da dívida pública federal é pós-fixada com base na taxa cambial ou em índices de preços) e (2) a nossa dívida é totalmente resgatável em moeda nacional (parte da dívida russa deveria ser paga em divisas).
Assim, se as incertezas aumentarem, a monetização se dará, como no final dos anos 80, por uma moeda indexada à taxa de juros. O título que exerceu essa função naquela época, a Letra Financeira do Tesouro -LFT, ainda está em vigor.
Uma outra diferença em relação à Alemanha de 1923 é que o governo tem o poder de obrigar os investidores institucionais a aplicar parte de seu portfólio em papéis da dívida pública. O giro diário no "overnight", que torna possível a monetização à brasileira, não era possível na Alemanha. O computador não havia sido inventado.
O sequestro de ativos ocorreu em países europeus após a Segunda Guerra. A medida extrema se justificou pelo excesso de emissão monetária a que foram levados pelo conflito. É provável que essas experiências tenham servido de inspiração para o Plano Collor.
Na Europa e no Brasil havia uma certa legitimidade para a violência do sequestro. Não é caso agora entre nós. E, mesmo que acontecesse, teria poucas chances de prosperar.
Preliminarmente, cabe lembrar que a parte mais expressiva da dívida pública é detida por fundos de investimento e fundos de pensão. São milhares de quotistas e participantes. Isso exigiria o estabelecimento de inúmeras exceções, como se viu no Plano Collor (lembrar as "torneirinhas").
Estados e municípios, partidos políticos, embaixadas, organizações religiosas, hospitais beneficentes e outros ficariam a salvo do sequestro. Imediatamente, o mercado criaria "swaps" e outros produtos para permitir o desbloqueio dos recursos.
O governo poderia dar o calote via leilão de reais para atender os que precisassem de liquidez ou desconfiassem da devolução dos seus recursos. Aí, tal como no Plano Bonex, haveria gigantescos deságios. Nem mesmo no Plano Collor essa alternativa foi utilizada.
Dessa vez, a Justiça muito provavelmente acolheria ações de inconstitucionalidade da medida. No Plano Collor, sentenças para liberação dos recursos ocorreram aos milhares em instâncias inferiores, mas foram derrubadas nos tribunais superiores, que por certo não queriam ser vistos como causadores do colapso do plano.
Agora, a Justiça já sabe que, diferentemente do que se dizia, o sequestro não resolveu os problemas do país. O governo seria condenado em milhões de ações em todas as instâncias.
A memória dos desacertos do sequestro do Plano Collor está muito viva no Ministério da Fazenda e no Banco Central. Mesmo que o presidente da República, em um acesso de doidice, quisesse embarcar na aventura, enfrentaria severa resistência da burocracia.
Se a loucura prevalecesse sobre o bom senso, o presidente poderia enfrentar um processo de impeachment. Se, mesmo assim, a coisa prosseguisse, seria também um completo desastre político. A traição gravíssima ao eleitorado conduziria Fernando Henrique ao lixo da história.
Dir-se-á que a monetização à brasileira nos levaria a impasses conhecidos. É verdade. Mas, até chegarmos a tanto, muito teria ainda que acontecer.
Até chegarmos a esse ponto, precisaria que tudo ou quase tudo desse errado. Se fosse o caso, o eventual fracasso do Plano Real poderia criar as condições políticas para enfrentarmos de vez os nossos conhecidos problemas estruturais. E, aí, adeus moratória ou medo dela.


Mailson da Nóbrega, 56, ex-ministro da Fazenda (governo José Sarney), sócio da Tendências Consultoria Integrada, escreve às sextas-feiras nesta coluna.


Texto Anterior: Heron critica estimativas
Próximo Texto: Fusões e aquisições movimentaram US$ 35 bi no Brasil em 1998
Índice

Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Agência Folha.