São Paulo, quarta-feira, 27 de fevereiro de 2002

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ARTIGO

Como as empresas de energia tiraram dinheiro da Califórnia

PAUL KRUGMAN

Até recentemente, parecia improvável que a Califórnia conseguisse um dia receber alguma coisa de volta das empresas de energia que, na opinião de funcionários do governo, roubaram bilhões de dólares do Estado. Veio em seguida o escândalo da Enron. Será que as revelações sobre as maquinações políticas da empresa e novas alegações de que a Enron manipulou o mercado de eletricidade na Califórnia vão mudar a situação?
Funcionários do governo californiano acreditam que sim. Abriram processo na Comissão Federal de Regulamentação da Energia (FERC) e solicitaram uma renegociação dos contratos assinados durante a crise de energia no Estado. Eles têm a esperança de que os funcionários da FERC, especialmente o presidente da comissão, Pat Wood (indicado para o posto por Ken Lay, da Enron), sintam a necessidade de demonstrar sua independência.
Os contratos em questão foram assinados cerca de um ano atrás, quando os preços da eletricidade eram dez vezes superiores aos normais no mercado atacadista californiano. Em junho passado, no entanto, os preços despencaram. O Estado deseja que os contratos sejam cancelados.
Será que as autoridades estaduais têm um caso sustentável? A opinião geral é que a Califórnia só pode culpar a si mesma pela crise de energia. O fiasco foi resultado de uma "desregulamentação mal conduzida". Mas essa opinião convencional só ganhou adeptos porque se enquadra na fé que nossa era deposita nos mercados (como Kenneth Lay declarou certa vez, "acredito em Deus e acredito nos mercados").
Complicado é definir a "desregulamentação mal conduzida". Muitos culpam os preços, que foram desregulamentados no atacado, mas não no varejo -mas isso tem pouca relação com o que saiu errado.
O fato-chave sobre a crise da Califórnia é que ela atingiu seu pico não no verão, quando os aparelhos de ar-condicionado consomem o máximo de energia, mas nos meses frios. A oferta deveria ter sido suficiente. Em lugar disso, houve escassez -por alguma razão, um terço da capacidade de geração do Estado ficou inativa.
As empresas alegaram que os geradores estavam em manutenção por conta da demanda do verão anterior. Mas a paralisação misteriosa se sustentou durante seis meses e permaneceu, a despeito dos preços estratosféricos atingidos pela eletricidade. Certamente, houve tempo e havia incentivo para acelerar os reparos.
Uma explicação mais provável (amplamente aceita por economistas especializados em energia) é que as empresas do ramo concluíram que poderiam ganhar mais fechando algumas usinas geradoras. E criaram uma escassez que jogou os preços às alturas.
Se a opinião convencional estivesse certa, a crise teria ficado mais grave no verão passado. Mas a eletricidade subitamente se tornou abundante. Os preços despencaram. Frank Wolak, o professor da Universidade Stanford que comanda o comitê de fiscalização do mercado de eletricidade da Califórnia, explicou o motivo.
Em junho, graças à conservação de energia, a maior parte das necessidades do Estado estava sendo atendida por contratos de longo prazo. O mercado "spot" (à vista), tão fácil de manipular, se tornara pequeno. Desapareceu o incentivo para que as empresas de energia deixassem as geradoras fora de operação para elevar os preços no "spot". Subitamente, a capacidade de geração ociosa voltou a funcionar e a crise acabou.
Agora, a verdade é que o programa de desregulamentação da Califórnia provavelmente foi mal conduzido, mas seu defeito foi confiar demais nos mercados -não de menos. Como diz Wolak, o sistema da Califórnia diferia de outras desregulamentações em larga medida por oferecer poucas salvaguardas contra a manipulação do mercado. E o Estado pagou um enorme preço por sua credulidade.
A Califórnia ganhará o processo? Tenho minhas dúvidas: o dinheiro continua a falar mais alto. Mas ao menos a mudança pós-Enron no clima de negócios tornou possível revisitar a crise da Califórnia, uma crise que deveria ter provocado uma reavaliação de nossa ideologia econômica, antes que os ideólogos a eliminem da memória.
 
Minha coluna de 22 de fevereiro [publicada na Folha no sábado] mencionou a "linha 47" do formulário de declaração de imposto de renda deste ano. O que eu disse estava correto, mas foi sujeito a interpretações equivocadas, a maioria das quais inocentes, outras tantas deliberadas. Permitam-me reformular: a maioria acredita ter recebido tanto uma restituição extraordinária quanto um corte de impostos. Mas a restituição representou apenas um adiantamento do corte; ela será descontada da restituição total que você poderia receber, de outra maneira. Centenas de milhares de pessoas que apresentaram suas declarações de renda antecipadamente já entenderam a situação. O efeito será dar para muitos um choque desagradável -exatamente o oposto do que a nossa economia precisa.


Paul Krugman, economista, é professor na Universidade Princeton (EUA). Este artigo foi originalmente publicado pelo "The New York Times".



Tradução de Paulo Migliacci



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