São Paulo, sábado, 27 de maio de 2000


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OPINIÃO ECONÔMICA

O cesto dos ovos em pé

VINÍCIUS LUMMERTZ

No capitalismo de verdade, banco existe para emprestar dinheiro a quem estiver disposto a abrir seu negócio e produzir riqueza geral. Aliás, não estaríamos aqui -eu escrevendo e você lendo- se banqueiros que acreditaram que a aventura humana é um bom negócio não tivessem financiado o homem que botou o ovo em pé.
O negócio financeiro implica lucro, mas também risco: uma aposta certa significa acúmulo de capital, mas uma errada pode levar a empresa à bancarrota. No capitalismo à brasileira, contudo, não há crédito para a produção e o desenvolvimento, nem risco para o banqueiro -que só consegue perder dinheiro se for incompetente demais ou ganancioso em excesso.
Entre nós o negócio bancário se limita a emprestar dinheiro ao governo, engordando as próprias burras com juros escorchantes. O financiamento do déficit público tornou-se uma megagalinha com ovos de ouro, enquanto o restante do sistema produtivo vegeta à sua sombra.
Em um ambiente distorcido como esse, a concentração de praticamente todas as instituições financeiras em São Paulo foi o passo natural, que terminou atropelando quaisquer bancos regionais ou locais, dizimando também a concorrência, hoje limitada a um convescote de compadres. Esses compadres tornaram-se grandes, ricos e poderosos, capazes de exterminar os temerários que se aventurem a entrar no ramo, porque nunca o Estado impôs limites ao sistema que acabou tomando conta da casa, diferentemente dos EUA, onde os bancos foram mantidos dentro das fronteiras estaduais. Lá, a concentração bancária resultante da globalização financeira não impediu a permanência de quase 10 mil bancos nem extinguiu os bancos regionais e locais. Curiosa ciranda: os grandes de lá, respeitando as regras internacionais, brigam com os grandes daqui. Que bom que temos grandes aqui. A doença é que os grandes de lá e os grandes daqui -aqui- não dão nem a mínima para a tribo dos pequenos de Pindorama.
Nos EUA foi criado um sistema, apoiado no Small Business Administration (SBA), com mais de 8.000 bancos, os "lenders" (agentes de crédito), que operam recursos para atender apenas pequenas empresas, com fundos de aval lastreados pelo Tesouro americano, que giram US$ 12 bilhões/ano. O tal livre mercado, lá, tem dessas coisas: micro e pequenas empresas têm acesso a crédito com aval do governo, direito a uma reserva de mercado de 23% das compras governamentais e recursos a fundo perdido para desenvolvimento de tecnologia.
É, o Tio Sam também tem coisas boas a ensinar. O problema é que ninguém nos conta. Por que ninguém fala disso? Repito: a quem interessa não falar disso?
A solução tentada pelo governo brasileiro de fazer política industrial com um agente estatal -o BNDES- tem sido prejudicada pela concentração dos bancos privados. O BNDES virou pronto-socorro de grandes empresários. Quando o grande quer investir, tem; quando o pequeno quer crescer, corta da própria carne, raspa o fundo do tacho, metendo a mão no seu capital de giro.
Pesquisa recente do Sebrae comprovou com estatísticas aquilo que qualquer pequeno ou médio empresário brasileiro está careca de saber: banco não gosta de emprestar dinheiro para quem precisa dele. Quando muito, empresta, sim, mas exatamente para quem dele não precisa. O crédito não passa pelos bancos, mas sem eles, pois a principal opção de financiamento é cada vez mais o pagamento de fornecedores a prazo, cujo percentual subiu de 55% na década passada para 64% hoje. Enquanto o empréstimo de bancos privados caiu de 18% para 7%, em bancos oficiais a queda foi de 7% para 3%. Não conheci o tempo, mas sei de ouvir falar que gerente de banco já viveu de emprestar dinheiro neste país. Felizmente, o recurso a agiotas, que chegou no passado a 8%, caiu também para 3%, o cheque pré-datado subiu de 41% para 47%, o cheque especial ou cartão de crédito, de 25% para 27%, e o desconto antecipado de duplicatas mantém-se em 14%.
O nosso capitalismo sem crédito é único no mundo, conforme comprova estudo recém-realizado pela Associação Nacional dos Executivos de Finanças, Administração e Contabilidade (Anefac), segundo o qual apenas 28% do PIB está disponível para crédito, enquanto na Indonésia o percentual vai a 51%; nos Estados Unidos, a 71%; na Coréia, a 74%; na Tailândia, a 115%; no Japão, a 116%, e na Alemanha, a 123%. Aqui a criação e a expansão das atividades produtivas, sobretudo dos pequenos negócios, dependem exclusivamente do engenho e da coragem do empreendedor, que não conta com o apoio, garantido nos Estados Unidos, pelas instituições bancárias.
Para integrar o Brasil a essa nova realidade, o Sebrae se propõe a fazer o papel do SBA nos Estados Unidos, precisando para tanto, é claro, convencer o Banco Central da necessidade de permitir a criação de uma rede de pequenos bancos regionais e locais para financiar as micro e pequenas empresas. Os recursos do Sebrae não seriam suficientes para bancar essa proposta. Precisamos de parceiros. BID, BNDES, Banco Mundial, CEF e BB teriam que participar. Nossos agentes de crédito só emprestariam até determinado valor, coberto por um novo aval do Sebrae, acima do qual só estariam autorizados a operar os bancos tradicionais.
O Banco Central, que mostrou sensibilidade ao criar as sociedades de apoio aos microempreendedores há um ano, pode agora ajudar o país a reformar um capitalismo deformado, que não é amado, que não tem admiradores e com poucos sócios. Um capitalismo de minorias. No Procon da nossa história, o que temos aí veio com defeito.


Vinícius Lummertz, 40, cientista político, é diretor técnico do Sebrae Nacional.

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