São Paulo, domingo, 27 de agosto de 2000


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OPINIÃO ECONÔMICA
Contra a natureza

RUBENS RICUPERO N ão, não vou falar dos pecados "contra naturam" que tanto escandalizavam os moralistas de outrora. Refiro-me a outros pretensos moralistas que hoje fulminam contra a integração regional como se se tratasse de um atentado contra a natureza, se não das coisas, ao menos do comércio internacional.
Algumas organizações econômicas, sobretudo essas nas quais o interesse dos poderosos pesa de modo determinante, desovam com frequência supostos estudos objetivos para provar que o Mercosul e arranjos semelhantes serviriam mais para desviar do que para criar comércio. É verdade que essas mesmas organizações não mostram o mesmo zelo quando examinam o Nafta, a associação de livre comércio da América do Norte, em que o efeito distorcivo das regras de origem casuístas atingiu extremos sem precedentes, em setores como o automobilístico, de autopeças e têxteis. Neste último, por exemplo, impera a chamada regra da tríplice origem, isto é, para que uma peça de vestuário goze de vantagens concedidas aos produtos da América do Norte, é preciso que tenham sido realizadas na região as três operações da fabricação: o fio, o tecido e a confecção final. Essa regra fez com que um exportador até então secundário de têxteis como o México se tornasse o principal fornecedor atual do mercado dos EUA, de onde vieram muitos dos capitais para montar a indústria exportadora mexicana.
Até aí nada de excepcional, a não ser no grau, pois o favorecimento aos parceiros é da essência de tais arranjos. O problema começa quando os defensores do multilateralismo, ou seja, do comércio sem preferências regionais, aplicam seu julgamento de forma seletiva, concentrando o fogo sobre o Mercosul. Este é particularmente acusado do feio pecado de desvio comercial, quer dizer, de utilizar instrumentos artificiais como as preferências tarifárias para dirigir entre os parceiros correntes de intercâmbio que, de outra forma, teriam seguido um curso mais "natural", definido como o resultante da lógica dos custos. É aqui que se esconde o defeito de raciocínio que se deve refutar, a fim de situar o regionalismo em contexto criativo.
Dois anos atrás, o Banco Mundial, conhecido pela sua escassa simpatia por iniciativas regionais, convidou-me a abrir um seminário sobre o tema em Genebra. Aproveitei para dizer que sempre me havia surpreendido a tendência dos economistas de abstrair completamente os antecedentes históricos ao formular seus estudos. Como se pode discutir, por exemplo, o que seria natural ou distorcivo no comércio de continentes como o nosso sem mencionar o passado mercantilista que durante séculos plasmou não só as atividades produtivas e comerciais dos sul-americanos como a presença ou, mais frequentemente, a ausência de vias de transportes, de comunicações, de contatos entre homens de negócio?
Lembrei em artigo recente que a Espanha e Portugal aplicaram com rigidez a suas colônias o sistema de monopólio exclusivo do comércio, que exigia não só alfândegas ciumentas e repressivas como a limitação a um só porto e a concentração em apenas um trajeto marítimo e terrestre de todo o transporte de mercadorias com vistas a facilitar a vigilância contra o descaminho. Os habitantes de Buenos Aires, por exemplo, só podiam obter os produtos importados de que necessitavam pelo sistema mais irracional que se possa imaginar: as mercadorias vinham da Espanha uma vez por ano em frota marítima que atracava em um porto atlântico do Panamá, daí eram transbordadas por terra ou rio até um porto no Pacífico, seguindo até Callao e Lima, de onde, em lombo de burro, subiam e desciam os Andes até chegar ao Prata, a milhares de quilômetros de distância e dezenas ou centenas de vezes o custo original. Não admira, portanto, que tivesse ocorrido uma explosão de prosperidade no curto período em que se tolerou o comércio com o Brasil, até que a instituição em Córdoba de uma alfândega interior viesse a sufocar o intercâmbio.
Os países sul-americanos são todos herdeiros desse sistema artificial e tortuoso, que inibiu as trocas e os contatos naturais entre vizinhos e lhes orientou todos os fluxos de comércio no sentido do Sul para o Norte, em direção à Europa e aos Estados Unidos, o eixo quase exclusivo das linhas de navegação, de transporte aéreo, de telecomunicações, assim como da tradição consolidada das relações de dependência comercial. Longe de ser uma espécie de desígnio da providência, decorrente da natureza das coisas, isso é o resultado do voluntarismo político, de séculos de história, que criaram as condições para se desenvolverem espontaneamente mais tarde relações que agora parecem naturais. Corrigir a história do colonialismo mercantilista exige igualmente obra de voluntarismo político, a fim de fortalecer um eixo complementar, o destinado a vincular os sul-americanos entre si. Prova de que ele não é menos natural que o outro é que o intercâmbio cresce geometricamente tão logo se estabelecem as vias de transporte e as facilidades institucionais, como ocorreu entre o Brasil e a Argentina, entre esta e o Chile, entre o Brasil e a Venezuela e entre esta última e a Colômbia. Cabe à Cúpula Sul-Americana que se realizará em Brasília no fim do mês dar o impulso definitivo a esse movimento, encorajando a articulação do Mercosul, do Grupo Andino, do Chile, das Guianas. Afinal, se queremos integrar-nos com o mundo, o melhor caminho é começar por integrar-nos com os que não são mais próximos.


Rubens Ricupero, 63, secretário-geral da Unctad (Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento) e ex-ministro da Fazenda (governo Itamar Franco), é autor de "O Ponto Ótimo da Crise" (editora Revan). Escreve aos domingos nesta coluna.



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