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OPINIÃO ECONÔMICA
Contra a natureza
RUBENS RICUPERO
N ão, não vou falar dos pecados "contra naturam" que
tanto escandalizavam os moralistas de outrora. Refiro-me a outros
pretensos moralistas que hoje fulminam contra a integração regional como se se tratasse de um
atentado contra a natureza, se
não das coisas, ao menos do comércio internacional.
Algumas organizações econômicas, sobretudo essas nas quais
o interesse dos poderosos pesa de
modo determinante, desovam
com frequência supostos estudos
objetivos para provar que o Mercosul e arranjos semelhantes serviriam mais para desviar do que
para criar comércio. É verdade
que essas mesmas organizações
não mostram o mesmo zelo
quando examinam o Nafta, a associação de livre comércio da
América do Norte, em que o efeito
distorcivo das regras de origem
casuístas atingiu extremos sem
precedentes, em setores como o
automobilístico, de autopeças e
têxteis. Neste último, por exemplo, impera a chamada regra da
tríplice origem, isto é, para que
uma peça de vestuário goze de
vantagens concedidas aos produtos da América do Norte, é preciso
que tenham sido realizadas na região as três operações da fabricação: o fio, o tecido e a confecção final. Essa regra fez com que um
exportador até então secundário
de têxteis como o México se tornasse o principal fornecedor atual
do mercado dos EUA, de onde
vieram muitos dos capitais para
montar a indústria exportadora
mexicana.
Até aí nada de excepcional, a
não ser no grau, pois o favorecimento aos parceiros é da essência
de tais arranjos. O problema começa quando os defensores do
multilateralismo, ou seja, do comércio sem preferências regionais, aplicam seu julgamento de
forma seletiva, concentrando o
fogo sobre o Mercosul. Este é particularmente acusado do feio pecado de desvio comercial, quer dizer, de utilizar instrumentos artificiais como as preferências tarifárias para dirigir entre os parceiros correntes de intercâmbio que,
de outra forma, teriam seguido
um curso mais "natural", definido como o resultante da lógica
dos custos. É aqui que se esconde
o defeito de raciocínio que se deve
refutar, a fim de situar o regionalismo em contexto criativo.
Dois anos atrás, o Banco Mundial, conhecido pela sua escassa
simpatia por iniciativas regionais, convidou-me a abrir um seminário sobre o tema em Genebra. Aproveitei para dizer que
sempre me havia surpreendido a
tendência dos economistas de
abstrair completamente os antecedentes históricos ao formular
seus estudos. Como se pode discutir, por exemplo, o que seria natural ou distorcivo no comércio de
continentes como o nosso sem
mencionar o passado mercantilista que durante séculos plasmou
não só as atividades produtivas e
comerciais dos sul-americanos
como a presença ou, mais frequentemente, a ausência de vias
de transportes, de comunicações,
de contatos entre homens de negócio?
Lembrei em artigo recente que a
Espanha e Portugal aplicaram
com rigidez a suas colônias o sistema de monopólio exclusivo do
comércio, que exigia não só alfândegas ciumentas e repressivas como a limitação a um só porto e a
concentração em apenas um trajeto marítimo e terrestre de todo o
transporte de mercadorias com
vistas a facilitar a vigilância contra o descaminho. Os habitantes
de Buenos Aires, por exemplo, só
podiam obter os produtos importados de que necessitavam pelo
sistema mais irracional que se
possa imaginar: as mercadorias
vinham da Espanha uma vez por
ano em frota marítima que atracava em um porto atlântico do
Panamá, daí eram transbordadas por terra ou rio até um porto
no Pacífico, seguindo até Callao e
Lima, de onde, em lombo de burro, subiam e desciam os Andes até
chegar ao Prata, a milhares de
quilômetros de distância e dezenas ou centenas de vezes o custo
original. Não admira, portanto,
que tivesse ocorrido uma explosão de prosperidade no curto período em que se tolerou o comércio com o Brasil, até que a instituição em Córdoba de uma alfândega interior viesse a sufocar o intercâmbio.
Os países sul-americanos são todos herdeiros desse sistema artificial e tortuoso, que inibiu as trocas e os contatos naturais entre
vizinhos e lhes orientou todos os
fluxos de comércio no sentido do
Sul para o Norte, em direção à
Europa e aos Estados Unidos, o
eixo quase exclusivo das linhas de
navegação, de transporte aéreo,
de telecomunicações, assim como
da tradição consolidada das relações de dependência comercial.
Longe de ser uma espécie de desígnio da providência, decorrente
da natureza das coisas, isso é o resultado do voluntarismo político,
de séculos de história, que criaram as condições para se desenvolverem espontaneamente mais
tarde relações que agora parecem
naturais. Corrigir a história do
colonialismo mercantilista exige
igualmente obra de voluntarismo
político, a fim de fortalecer um eixo complementar, o destinado a
vincular os sul-americanos entre
si. Prova de que ele não é menos
natural que o outro é que o intercâmbio cresce geometricamente
tão logo se estabelecem as vias de
transporte e as facilidades institucionais, como ocorreu entre o
Brasil e a Argentina, entre esta e o
Chile, entre o Brasil e a Venezuela
e entre esta última e a Colômbia.
Cabe à Cúpula Sul-Americana
que se realizará em Brasília no
fim do mês dar o impulso definitivo a esse movimento, encorajando a articulação do Mercosul, do
Grupo Andino, do Chile, das
Guianas. Afinal, se queremos integrar-nos com o mundo, o melhor caminho é começar por integrar-nos com os que não são mais
próximos.
Rubens Ricupero, 63, secretário-geral
da Unctad (Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento)
e ex-ministro da Fazenda (governo Itamar Franco), é autor de "O Ponto Ótimo
da Crise" (editora Revan). Escreve aos
domingos nesta coluna.
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