São Paulo, domingo, 28 de fevereiro de 1999

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LUÍS NASSIF
Legado de Lobato e Bonfim

Aprendi a ler com Monteiro Lobato. Creio que, com 10 anos, havia lido toda a coleção infantil. "Reinações de Narizinho", "Os 12 Trabalhos de Hércules" e por aí em adiante. Na escola Sete de Setembro, ali na rua Assis Figueiredo, a diretora dona Nicolina Bernardes gostava de exibir os conhecimentos do aluno da obra de Lobato.
Foi na adolescência que tomei contato com a obra adulta de Lobato. Para quem se extasiara com Pedrinho e Narizinho, dona Benta e tia Anastácia, Emília e Visconde, confesso que "Urupês" não chegou a me entusiasmar. Gostava do seu estilo límpido, da maneira como simplificava a acentuação das palavras mas, perto do "Sítio do Picapau Amarelo", "Urupês" não passava de uma cidade morta.
Já o livro sobre petróleo e aço chacoalhou minha imaginação adolescente. Lobato levantava uma bandeira nacionalista que nunca tinha imaginado até então. Não se tratava de exortações contra inimigos externos, de slogans nacionalistas jacobinos, mas de um discurso incendiário contra o atraso -que campeava nas elites, no ambiente político e na administração pública- e uma denúncia violenta contra o papel castrador da máquina pública contra qualquer iniciativa que proviesse da sociedade.
Da mesma maneira que ensinava o caboclo Jeca Tatu a usar botina, nas historinhas que ilustravam os almanaques de remédios, Lobato tentava passar noções mínimas de modernidade às nossas elites.
Seu texto tinha uma eficiência panfletária inigualável, talvez superada apenas por Gondim da Fonseca, um dos jornalistas da campanha do "Petróleo é nosso", o mais brilhante texto jornalístico que já conheci.
O modelo lobatiano era a economia americana, não a ênfase imperialista, mas o universo de empreendedores buscando o desenvolvimento, atacando as mazelas sociais, investindo nas indústrias de ponta da época (siderurgia e petróleo) e uma sociedade que se reunia para resolver seus próprios problemas.
Ao contrário dos generais que dominavam o Conselho Nacional do Petróleo, a proposta de Lobato era a criação de um ambiente econômico moderno, que permitisse o florescimento dos empreendedores desenvolvendo as potencialidades nacionais.
Décadas depois, tomei contato com a obra de Manuel Bonfim, um médico sergipano, filho de usineiro. Antes mesmo de Lobato, logo no começo do século, Bonfim já tinha entendido mais do que qualquer de seus contemporâneos a tragédia brasileira, o aparato político-burocrático do Estado que impedia o desenvolvimento da nação.
Ao contrário dos basbaques da elite, que atribuíam o atraso ao povo brasileiro, Bonfim desmistificava as teses raciais, e demonstrava cabalmente que as causas deviam ser procuradas no modelo de Estado, voltado exclusivamente para o atendimento das demandas políticas dos governantes e das corporações.
No início do século, em seu clássico "América Latina, Males de Origem", Bonfim falava com admiração da maneira como a sociedade americana buscava o desenvolvimento e aplicava seus recursos para resolver problemas sociais.
Lembrava com uma ponta de inveja como Japão, Argentina e Chile tinham resolvido seus principais problemas sociais. Anotava que, enquanto o povo brasileiro havia inspirado a campanha da Abolição, a elite produzira a Guerra do Paraguai.
Mostrava como as crises que sacudiam periodicamente o país como a hiperinflação que se seguiu à Proclamação eram exclusivamente crises do Estado que, depois, transformavam-se em crise da nação, pela necessidade do Estado em emitir desenfreadamente para atender às demandas dos sócios do poder.
Finalmente, apontava a mistificação do que ele denominava de "financistas", os economistas que se apresentavam como dotados de saber superior, da capacidade de resolver todos os problemas em um passe de mágica.
Esses "financistas" desviavam o foco da reforma do Estado para formulações genéricas, mágicas, ligadas ao equilíbrio orçamentário. O importante é o equilíbrio orçamentário, não a maneira como se obtém o equilíbrio.
Cortar soldos militares, benefícios de aliados políticos, salários da máquina? Nem pensar, dizia Bonfim. Corta-se onde a resistência seja menor. Toca a cortar, então, verbas para educação, para saúde, obras integradoras, fora dos centros de poder.
Quando terminava o processo, concluía Bonfim, o Estado estava melhor, e a nação, mais pobre. No começo do século, em um país quase selvagem, Bonfim identificava estereótipos que, nos anos 80 e 90, viriam repetir a mistificação.
Não coincidentemente, de admiradores de um modelo de país desenvolvido, Lobato e Bonfim terminaram a vida ídolos do movimento estudantil, totalmente céticos quanto à possibilidade de as elites políticas e econômicas romperem com a pesada herança portuguesa e promoverem o novo.
E fico imaginando essa solidão cósmica dos visionários, dessas pessoas que ousaram sonhar o novo em um país onde toda idéia nova acaba morta por interesses corporativistas, empresariais, políticos, pelo medo de que o novo desbanque definitivamente o velho.
Penso como a realidade, dia a dia, matou suas esperanças, deixou-os céticos, ressequidos, derrotados pelo velho. Mas como, de suas penas, brotaram sementes de esperança que atravessaram as décadas, chegaram ao limiar do século, alimentando como réstias de luz a esperança das novas gerações de continuar perseguindo o novo.
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E-mail: lnassif@uol.com.br



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