São Paulo, quinta-feira, 28 de novembro de 2002

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OPINIÃO ECONÔMICA

Brasil, esquentai vossos pandeiros!

PAULO NOGUEIRA BATISTA JR.

"Chegou a hora dessa gente bronzeada mostrar seu valor (...) O Tio Sam está querendo conhecer a nossa batucada (...) Brasil, esquentai vossos pandeiros Iluminai os terreiros que nós queremos sambar." Assis Valente

No artigo da quinta-feira passada, procurei mostrar que a velocidade do ajustamento das contas externas está sendo muito maior do que se previa há três meses, quando o Brasil assinou o seu mais recente acordo com o FMI. Comecei a defender a tese, que talvez pareça extravagante e até meio aloprada, de que o Brasil pode pensar seriamente em dispensar o FMI. De repente, o espaço acabou, só me restando pedir ao leitor que aguardasse o artigo de hoje.
Uma amiga querida, casada há mais de 40 anos com um francês, daqueles muito chegados à lógica cartesiana e à fundamentação numérica, costuma interrompê-lo com a advertência: "Michel, estatística mata qualquer conversa!". Na semana passada, preocupado em dissipar a impressão de loucura, cometi o mesmo engano fatal: abusei dos números. A legibilidade do artigo ficou bastante prejudicada. Paciência. Hoje vai ser diferente.
Teses ousadas costumam dar margem a mal-entendidos de todo tipo. Por exemplo: alguns deduziram que o autor destas linhas merecia realmente uma camisa-de-força rápida, pois estava querendo dispensar os US$ 27 bilhões ainda não desembolsados e "romper" com o FMI.
Alto lá! Não se trata, leitor, de sugerir que o governo Lula denuncie o acordo com o FMI e rompa relações com esse benfazejo organismo. E nem mesmo de reeditar o gesto dramático daquele perigoso radical, Juscelino Kubitschek, que em 1959 suspendeu negociações com o FMI e transformou a decisão em bandeira política (ver a respeito desse episódio emblemático o artigo de Celso Furtado "Revisitando JK", Folha, 15 de setembro de 2002, pág. A3). Trata-se apenas de trabalhar o mais rápido possível para poder abrir mão dos empréstimos do FMI.
Será difícil, evidentemente, alcançar esse objetivo no ano que vem. O estrago provocado pelo governo Fernando Henrique Cardoso nas contas externas do Brasil não será superado em prazo curto. Mas, se a nova política econômica for bem conduzida, com foco no essencial, o Brasil poderá muito bem dispensar a renovação do acordo atual, que expira no final de 2003. Mais do que isso: talvez seja possível não sacar as parcelas finais do empréstimo, cujos desembolsos estão previstos para agosto e novembro.
Por que essa preocupação? O FMI é um organismo político, controlado pelos principais países desenvolvidos, notadamente pelos EUA. Como já foi comentado mais de uma vez nesta coluna, esses países não se constrangem em utilizar o FMI como instrumento de suas agendas nacionais.
Além disso, não vamos esquecer que os tais US$ 27 bilhões são um pouco "teóricos", vale dizer, o seu desembolso será feito em parcelas e estará estritamente condicionado a compromissos e exigências ainda não totalmente especificados (para o cronograma de desembolsos e as suas precondições gerais ver "Brazil - Technical Memorandum of Understanding", table 1, August 29, 2002, www.imf.org). Pior: a experiência de diversos países (vide Argentina em 2002, por exemplo) mostra que, dependendo das circunstâncias políticas e das prioridades dos países desenvolvidos, a lista de exigências do FMI pode aumentar de forma imprevisível...
Não vamos nos enganar. As forças econômicas e políticas derrotadas na eleição de 2002 querem agora mudar o resultado no "tapetão". Há várias maneiras de tentar fazê-lo. Um exemplo: votar a independência ou autonomia do Banco Central, procurando tirá-lo das mãos do presidente eleito. O primeiro passo é induzi-lo a nomear uma diretoria confiável aos olhos dos mercados financeiros externos e internos. O segundo é dar mandato fixo e longo a essa diretoria. No acordo com o FMI, a autonomia do Banco Central está expressamente mencionada ("Brazil Memorandum of Economic Policies", parágrafo 18, August 29, 2002, www.imf.org).
Outro exemplo de manobra de "tapetão": usar o FMI como alavanca para vencer resistências do novo governo à Alca (Área de Livre Comércio das Américas). Ressalte-se que não há nenhuma base jurídica para vincular essas duas negociações. Não há nada nos estatutos do FMI que o autorize a induzir ou forçar países submetidos a seus programas de ajuste a participar de áreas de livre comércio, uniões aduaneiras ou outros esquemas comerciais regionais. Na prática, contudo, há risco considerável de que uma eventual tentativa do governo Lula de defender com mais vigor os interesses do país no âmbito da Alca possa repercutir de forma desfavorável nas sucessivas revisões e desembolsos previstos no acordo com o FMI.
Em suma, por essas e outras razões, é fundamental que o novo governo trabalhe sistematicamente para se tornar independente dos conselhos e auxílios do Fundo. Trata-se, fundamentalmente, de gerar um superávit substancial em moeda estrangeira. Não é nada fácil, reconheço. Mas não é impossível.
"Chegou a hora dessa gente bronzeada mostrar seu valor!"


Paulo Nogueira Batista Jr., 47, economista, pesquisador visitante do Instituto de Estudos Avançados da USP e professor da FGV-EAESP, escreve às quintas-feiras nesta coluna. É autor do livro "A Economia como Ela É..." (Boitempo Editorial, 3ª edição, 2002).

E-mail - pnbjr@attglobal.net



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