São Paulo, segunda-feira, 29 de julho de 2002

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

OPINIÃO ECONÔMICA

Duelo de titãs

JOSEF BARAT O todo-poderoso secretário do Tesouro norte americano, Paul O'Neill, fez recentemente uma declaração que tornou ainda mais conturbado o mercado financeiro. Disse que "jogar dinheiro dos contribuintes americanos nas incertezas políticas do Brasil não parece ser muito brilhante". Segundo ele, os investidores estariam nervosos com o desfecho da eleição e, sendo assim, ficaria difícil uma ajuda emergencial do FMI. Jogou um galão de gasolina na fogueira, para alegria dos especuladores. No ano passado, no início da crise argentina, o mesmo O'Neill disse não querer "uma Argentina que continue a consumir o dinheiro dos carpinteiros e encanadores americanos que ganham US$ 50 mil por ano e se perguntam que diabo estamos fazendo com o seu dinheiro". Ainda bem que os contribuintes americanos são merecedores desse respeito por parte do seu ministro da Fazenda. E é comovedor que os carpinteiros e encanadores tenham quem mostre tanto zelo pelas suas poupanças aplicadas em países distantes e exóticos da América Latina. Pena que contribuintes e trabalhadores americanos não possam ser protegidos das falcatruas da Enron ou da WorldCom. Nem das vergonhosas manipulações em portfólios dos bancos de investimentos. Logo esses, com poder de vida ou morte nas previsões que elevam ou baixam riscos de países periféricos.
Mas, como dizem os franceses -que também brindaram o mercado financeiro com um fantástico embuste-, "c'est la vie". Os nossos carpinteiros e encanadores nem no mais delirante sonho se imaginam ganhando US$ 50 mil por ano. E, além do mais, nossas autoridades financeiras não estão dando a mínima para eles e tampouco para a classe média que busca proteção para as suas poupanças. Se puderem, até as confiscam em nome do enxugamento da dívida pública e, como sabemos, fica por isso mesmo. O importante é cumprir as metas impostas pelo FMI e ajudarmos a proteger os contribuintes americanos. Para isso, temos uma das cargas tributárias mais elevadas do planeta e cortamos na carne gastos em investimentos sociais.
E assistimos perplexos a um embate de "cachorros grandes". Um duelo de titãs na arena global: de um lado, a chamada "economia real", que produz, gera empregos e renda, amplia mercados e contribui para o aumento da riqueza das nações. De outro, o "sistema financeiro", cujos fluxos representam, cada vez menos, a contrapartida da produção e engrossam "bolhas especulativas" que brincam com ganhos de um pequeno grupo de especuladores, em detrimento do bem-estar das nações. Bolhas que, sabemos, acolhem generosamente dinheiro de todas as procedências, inclusive as que têm origem em atividades à margem da lei. A essa altura, com a globalização dos mercados financeiros, a própria economia real já está se contaminando com as especulações financeiras, como vimos nos escândalos de empresas produtivas consideradas sérias. Afinal, nas "reengenharias" das empresas, milhares de trabalhadores são demitidos para enxugar custos diante da competição. Mas os altos executivos multiplicam absurdamente seus ganhos e isso tem que ser, de algum jeito, "maquiado" nos balanços para ludibriar os acionistas.
No Brasil, de certa forma, estamos acostumados com o jogo produção X sistema financeiro. Ele vem sendo sistematicamente ganho por este ultimo desde os anos 80, muito embora a produção -especialmente com o esforço da sua ala nacional- tenha lutado bravamente e mantido o placar apertado. Mas o juiz não é muito amigo de quem produz. Pesam sobre a economia real a carga tributária, os juros desproporcionais e as tarifas dos serviços públicos. E o sistema financeiro até pode contar, à maneira de Maradona, com a "mão de Deus" para fazer os seus gols.
Mas agora estamos assistindo a embates em escala mundial. E são contradições que temos dificuldade em entender. Do lado da produção, vemos grandes conglomerados transnacionais investindo no Brasil, confiantes na expansão do seu mercado interno, enxergando o longo prazo como promissor para a venda de seus produtos e serviços. Fazendo a aposta de que carpinteiros e encanadores brasileiros, além de uma grande massa de pessoas pobres, tenham acesso a um leque mais amplo de bens de consumo e serviços. E consultorias internacionais colocando sempre o Brasil entre os dez maiores mercados consumidores dos mais diferentes produtos.
Mas, de outro lado, bancos de investimentos e avaliadores financeiros -com visão estreita de curto prazo- colocam o Brasil como equivalente ou pior que países como Nigéria, Colômbia e Equador, para não falar da sofrida Argentina. E, mais contraditório ainda, o FMI elogia o Brasil por ter feito a "lição de casa" (temos tutores, pois não?), o secretário do Tesouro contradiz o FMI e os especuladores ganham fortunas da noite para o dia a pretexto das eleições brasileiras, para embaraço da simpática embaixadora americana. Claro que não podemos dizer que a situação financeira do Brasil a curto prazo seja confortável, por razões que vêm sendo debatidas amplamente na imprensa. Mas sacrificar todo o esforço produtivo, o controle da inflação e a democracia no altar do "mercado" (palavra que hoje, veja só, designa somente o financeiro) é ato de insanidade política perpetrado em escala mundial.
Quem vai ganhar essa disputa no âmbito da globalização não sabemos. Se os grandes conglomerados produtivos forem contaminados pelo vírus da especulação financeira e seus executivos continuarem a gerar "mutretas" colossais para encobrir seus ganhos, estaremos todos perdidos. Sobra para nós. Mas, se há uma "lição de casa" que temos que fazer por nós mesmos, sem tutela, é a de fortalecer a produção, ampliar o mercado interno -redistribuindo renda e gerando empregos-, diversificar nossas exportações, fortalecer as infra-estruturas e aliviar a carga tributária, injusta e burra.
Temos que ter uma estratégia de crescimento com estabilidade, pensar no longo prazo e ter um Estado moderno, articulado e flexível para induzir e fomentar a produção, além de agências reguladoras independentes e atuantes. Vale, neste momento, o preceito talmúdico: "Se não fizermos por nós mesmos, quem fará?". Certamente não será o chamado "mercado", nem os que já estão especulando com a nossa aflição. Que o Penta de Felipão e da seleção nos sirva realmente de lição. Sem os "cartolas", naturalmente.


Josef Barat, 62, economista, é consultor de entidades públicas e privadas e membro do Conselho de Economia, Sociologia e Política da Federação do Comércio do Estado de São Paulo. Foi secretário de Transportes do Estado do Rio de Janeiro (governo Faria Lima e Moreira Franco) e presidente da Empresa Metropolitana de Transportes do Estado de São Paulo (1979-80).


Texto Anterior: Entenda: Investidor negocia ação sem possuí-la
Próximo Texto: Ações: Interferência do governo no preço dos combustíveis afeta Petrobras
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.