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OPINIÃO ECONÔMICA
Alca e investimento estrangeiro
PAULO NOGUEIRA BATISTA JR.
Meu pai foi diplomata de carreira e dedicou grande parte da sua vida a temas econômicos e, em especial, a negociações comerciais. Quando ele morreu, em 1994, a Área de Livre Comércio das Américas (Alca) estava ainda em fase de gestação.
Apesar disso, era uma das questões que o preocupavam. Ele foi
um dos primeiros a perceber os riscos que comportava a "Iniciativa para as Américas", embrião da Alca, lançada pelo presidente
George Bush (pai do atual presidente dos EUA) em 1990.
Desde então, as negociações para a formação da Alca, impulsionadas pelos EUA, avançaram
bastante. Se estivesse vivo, meu
pai estaria subindo pelas paredes.
Há dois ou três anos, aconteceu
um episódio curioso, que me deixou um pouco cismado. Hesito
em contá-lo, mas, como disse
Hamlet, "há mais coisas entre o
céu e a terra...". Caminhava uma
tarde pela rua Atlântica, quando
bateu um vento forte, espalhando
jornais velhos que haviam sido
empilhados na calçada. Um deles
voou contra as minhas pernas.
Coisa curiosa: era o caderno Dinheiro da Folha, uma edição bem
antiga, de uma quinta-feira, trazendo, portanto, artigo meu. Tema do artigo: Alca.
Não era um assunto sobre o
qual tivesse escrito com frequência até aquele momento. Ora, leitor, nos filmes, nos romances e
talvez -quem sabe?- na vida
real, o vento é um dos canais de
que se vale o "outro mundo" para
se comunicar com os habitantes
mais obtusos do nosso. Pensei,
imediatamente: preciso voltar a
tratar da Alca.
Desde então, com a ajuda inestimável do embaixador Samuel
Pinheiro Guimarães (aliás, discípulo declarado do meu pai, com
quem trabalhou vários anos),
passei a acompanhar as negociações da Alca com mais cuidado.
Escrevi várias vezes sobre elas
nesta coluna. Volto a fazê-lo hoje.
É incrível que, depois de tantos
anos, muitas pessoas no Brasil
ainda não se dêem conta do alcance e das implicações da negociação em curso. Se vier a ser criada, a Alca não será apenas uma
área de livre comércio tradicional, isto é, não envolverá apenas
a supressão das barreiras ao comércio de bens e serviços dentro
das Américas -algo que já seria,
em si mesmo, extraordinariamente problemático do nosso
ponto de vista (tanto mais que os
EUA já deram várias indicações
de que não têm planos de abrir o
seu mercado na maior parte dos
setores que interessam ao Brasil).
A agenda de negociações proposta pelos EUA vai muito além
do comércio de mercadorias. Em
junho de 1998 foram estabelecidos nove grupos de negociação,
que cobrem as seguintes áreas:
acesso a mercados; agricultura;
serviços; investimento; compras
governamentais; propriedade intelectual; subsídios, antidumping
e tarifas compensatórias; defesa
da concorrência; e solução de
controvérsias. Esses grupos vêm
funcionando regularmente desde
aquela época.
A título de exemplo, vejamos alguns aspectos do que pretendem
os EUA na área de investimentos.
O governo dos EUA quer uma definição ampla de "investimento",
que inclua todas as formas de ativos com características de investimento, como companhias, ações,
certas formas de dívida, certas
concessões, contratos e propriedade intelectual.
A pretensão dos EUA é que o
acordo da Alca estabeleça a obrigação de conceder aos investidores de um país-membro da área
"tratamento nacional" ou "tratamento de nação mais favorecida", o que for mais vantajoso para o investidor. Para as entidades
subnacionais, os EUA definem
"tratamento nacional" como
aquele que o Estado ou Província
concede a investidores e a investimentos de outros Estados e Províncias. Assim, os governos dos
países integrantes da Alca ficariam impedidos, por tratado internacional, de definir políticas
que favoreçam as empresas de capital nacional "vis-à-vis" de empresas de outros países da Alca,
ainda que seja apenas para compensá-las por desvantagens estruturais ou de natureza sistêmica.
Os EUA propõem, também, que
o investidor tenha o direito de
transferir fundos para dentro ou
para fora de qualquer país da Alca sem demora e a uma taxa de
câmbio de mercado. Essa garantia cobriria todas as transferências relacionadas a um investimento, inclusive juros, remessa de
lucros, repatriação do capital e
injeção de recursos financeiros
adicionais depois da realização
do investimento inicial.
Além disso, deseja o governo
norte-americano que o acordo da
Alca proíba, com algumas exceções, a definição, pelos governos
dos países-membros, de metas ou
requisitos a serem cumpridos pelos investidores de outros países-membros. Pretende, por exemplo,
proibir ou restringir a especificação de níveis de conteúdo local, de
preferências por bens produzidos
domesticamente, de compromissos de exportação, de transferência de tecnologia e de restrições à
venda de bens e serviços no território do país receptor do investimento (para mais detalhes, ver
"Negotiating Group on Investment: Public Summary of U.S. Position", www.ustr.gov).
Evidentemente, esse pequeno resumo dá apenas uma pálida
idéia dos riscos que estamos correndo. De todas as negociações
internacionais de que participa o Brasil, essa é a que representa a
maior ameaça à nossa soberania.
Na semana que vem, Semana da Pátria, pretendo escrever sobre
o assunto outra vez.
Paulo Nogueira Batista Jr., 47, economista, pesquisador visitante do Instituto de Estudos Avançados da USP e professor da FGV-SP, escreve às quintas-feiras nesta coluna. É autor do livro "A Economia como Ela É..." (Boitempo Editorial, 3ª edição, 2002).
E-mail - pnbjr@attglobal.net
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