São Paulo, quinta-feira, 29 de agosto de 2002

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OPINIÃO ECONÔMICA

Alca e investimento estrangeiro

PAULO NOGUEIRA BATISTA JR.

Meu pai foi diplomata de carreira e dedicou grande parte da sua vida a temas econômicos e, em especial, a negociações comerciais. Quando ele morreu, em 1994, a Área de Livre Comércio das Américas (Alca) estava ainda em fase de gestação. Apesar disso, era uma das questões que o preocupavam. Ele foi um dos primeiros a perceber os riscos que comportava a "Iniciativa para as Américas", embrião da Alca, lançada pelo presidente George Bush (pai do atual presidente dos EUA) em 1990.
Desde então, as negociações para a formação da Alca, impulsionadas pelos EUA, avançaram bastante. Se estivesse vivo, meu pai estaria subindo pelas paredes.
Há dois ou três anos, aconteceu um episódio curioso, que me deixou um pouco cismado. Hesito em contá-lo, mas, como disse Hamlet, "há mais coisas entre o céu e a terra...". Caminhava uma tarde pela rua Atlântica, quando bateu um vento forte, espalhando jornais velhos que haviam sido empilhados na calçada. Um deles voou contra as minhas pernas. Coisa curiosa: era o caderno Dinheiro da Folha, uma edição bem antiga, de uma quinta-feira, trazendo, portanto, artigo meu. Tema do artigo: Alca.
Não era um assunto sobre o qual tivesse escrito com frequência até aquele momento. Ora, leitor, nos filmes, nos romances e talvez -quem sabe?- na vida real, o vento é um dos canais de que se vale o "outro mundo" para se comunicar com os habitantes mais obtusos do nosso. Pensei, imediatamente: preciso voltar a tratar da Alca.
Desde então, com a ajuda inestimável do embaixador Samuel Pinheiro Guimarães (aliás, discípulo declarado do meu pai, com quem trabalhou vários anos), passei a acompanhar as negociações da Alca com mais cuidado. Escrevi várias vezes sobre elas nesta coluna. Volto a fazê-lo hoje.
É incrível que, depois de tantos anos, muitas pessoas no Brasil ainda não se dêem conta do alcance e das implicações da negociação em curso. Se vier a ser criada, a Alca não será apenas uma área de livre comércio tradicional, isto é, não envolverá apenas a supressão das barreiras ao comércio de bens e serviços dentro das Américas -algo que já seria, em si mesmo, extraordinariamente problemático do nosso ponto de vista (tanto mais que os EUA já deram várias indicações de que não têm planos de abrir o seu mercado na maior parte dos setores que interessam ao Brasil).
A agenda de negociações proposta pelos EUA vai muito além do comércio de mercadorias. Em junho de 1998 foram estabelecidos nove grupos de negociação, que cobrem as seguintes áreas: acesso a mercados; agricultura; serviços; investimento; compras governamentais; propriedade intelectual; subsídios, antidumping e tarifas compensatórias; defesa da concorrência; e solução de controvérsias. Esses grupos vêm funcionando regularmente desde aquela época.
A título de exemplo, vejamos alguns aspectos do que pretendem os EUA na área de investimentos. O governo dos EUA quer uma definição ampla de "investimento", que inclua todas as formas de ativos com características de investimento, como companhias, ações, certas formas de dívida, certas concessões, contratos e propriedade intelectual.
A pretensão dos EUA é que o acordo da Alca estabeleça a obrigação de conceder aos investidores de um país-membro da área "tratamento nacional" ou "tratamento de nação mais favorecida", o que for mais vantajoso para o investidor. Para as entidades subnacionais, os EUA definem "tratamento nacional" como aquele que o Estado ou Província concede a investidores e a investimentos de outros Estados e Províncias. Assim, os governos dos países integrantes da Alca ficariam impedidos, por tratado internacional, de definir políticas que favoreçam as empresas de capital nacional "vis-à-vis" de empresas de outros países da Alca, ainda que seja apenas para compensá-las por desvantagens estruturais ou de natureza sistêmica.
Os EUA propõem, também, que o investidor tenha o direito de transferir fundos para dentro ou para fora de qualquer país da Alca sem demora e a uma taxa de câmbio de mercado. Essa garantia cobriria todas as transferências relacionadas a um investimento, inclusive juros, remessa de lucros, repatriação do capital e injeção de recursos financeiros adicionais depois da realização do investimento inicial.
Além disso, deseja o governo norte-americano que o acordo da Alca proíba, com algumas exceções, a definição, pelos governos dos países-membros, de metas ou requisitos a serem cumpridos pelos investidores de outros países-membros. Pretende, por exemplo, proibir ou restringir a especificação de níveis de conteúdo local, de preferências por bens produzidos domesticamente, de compromissos de exportação, de transferência de tecnologia e de restrições à venda de bens e serviços no território do país receptor do investimento (para mais detalhes, ver "Negotiating Group on Investment: Public Summary of U.S. Position", www.ustr.gov).
Evidentemente, esse pequeno resumo dá apenas uma pálida idéia dos riscos que estamos correndo. De todas as negociações internacionais de que participa o Brasil, essa é a que representa a maior ameaça à nossa soberania.
Na semana que vem, Semana da Pátria, pretendo escrever sobre o assunto outra vez.


Paulo Nogueira Batista Jr., 47, economista, pesquisador visitante do Instituto de Estudos Avançados da USP e professor da FGV-SP, escreve às quintas-feiras nesta coluna. É autor do livro "A Economia como Ela É..." (Boitempo Editorial, 3ª edição, 2002).
E-mail - pnbjr@attglobal.net


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