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OPINIÃO ECONÔMICA
Patrícios, mascates e deputados
RUBENS RICUPERO
Em 1961 ou 62, ouvi do finado
Emílio Carlos que eram mais de
50 os integrantes do que ele chamava de "bancada da República
Árabe Unida" no Congresso Nacional (muito menor então do
que em nossos dias). Quantos serão hoje? Levantamento feito em
1987 e restrito à comunidade albanesa recenseou 33 deputados
federais, sete senadores e dois governadores de Estado, sem contar
ministros, deputados estaduais,
prefeitos etc. São dados que destacam dois fatos notáveis relativos
aos libaneses e, em boa medida,
também aos sírios, palestinos e
outros árabes.
O primeiro é que, país altamente deficitário no comércio (exportações de US$ 600 milhões contra
importações de US$ 7,5 bilhões), o
que o Líbano mais exporta mesmo são libaneses. O segundo é o
êxito extraordinário de integração e mobilidade social e, em matéria de representação política,
provavelmente sem paralelo com
outras comunidades, de libaneses, sírios e árabes em geral. Esse
último aspecto não é, como se sabe, particularidade do Brasil, mas
de toda a América Latina, onde
diversos descendentes de árabes
chegaram à presidência dos respectivos países, como Menem, na
Argentina, Turbay, na Colômbia,
mais de um no Equador, inclusive
o atual.
Acabo de ler e recomendo vivamente a meus leitores excelente
estudo sobre "Sírios e Libaneses e
seus Descendentes na Sociedade
Paulista", do professor da Universidade de São Paulo Oswaldo
Truzzi, parte da coletânea "Fazer
a América", organizada por Boris
Fausto. Nele se registra o paradoxo de que, pequenos agricultores,
originariamente, os libaneses e sírios bateram de cara, no Brasil,
com o latifúndio cafeeiro que lhes
vedava o acesso à terra. Tiveram,
assim, de converter-se em vendedores itinerantes, os mascates, de
quem se tornaram praticamente
a encarnação quase exclusiva.
Logo expulsaram do ramo os portugueses, mais conservadores, e os
tenazes calabreses, que acabaram
tendo de voltar-se para o comércio de peixes e verduras. Como
mascates que percorriam as fazendas cumpriram valioso papel
social, ao oferecer aos colonos a
possibilidade de se libertar da escravidão criada pelo endividamento em relação ao armazém
ou "venda" dos fazendeiros.
Observa o professor Truzzi:
"Não seria demais afirmar que
foram os sírios e libaneses que no
Brasil "inventaram o comércio
popular'". Dá as razões, citando o
que dizia dos mascates outro estudioso, Clark Knowlton: "Não tinham preço fixo (...) Viviam com
muito pouco. Se o freguês não podia pagar o dinheiro, o mascate
aceitava em troca borracha, gado, café, ouro (...) Os sírios e libaneses também estavam dispostos
a conceder crédito até por um ano
de cada vez. Devido a sua flexibilidade e disposição de correr riscos, poucas nacionalidades podiam competir com eles".
Não demorou para que, de itinerantes, passassem a lojistas fixos, especializando-se sobretudo
em tecidos e armarinhos. O passo
seguinte foi a grande indústria
têxtil e de confecções, capítulo da
industrialização brasileira de que
foram os principais protagonistas. No espaço de uma geração
completaram a integração vertical do setor, da produção em massa até a venda na porta do freguês.
Não se pense que essa inventividade de cunho popular seja coisa
do passado. Agora mesmo, uma
querida amiga minha deu-se conta do que talvez esteja a passar
despercebido de sociólogos e marqueteiros: que o grande número
de conversões ao protestantismo
evangélico criou mercado novo de
características próprias. Os "crentes" necessitam ir ao culto de terno e gravata, mas era muito difícil encontrar essa indumentária a
bom preço. Minha amiga teve
grande êxito, ao fornecer a esse
mercado ternos decentes e baratos. Sua perspicácia comercial redobra de mérito ao possibilitar a
esses homens de fé afirmar seu recém-conquistado sentimento de
dignidade e auto-estima.
Muito haveria ainda a dizer,
mas, como nem tudo cabe no papel, fiquem ao menos registrados
três traços da colônia libanesa e
síria: 1º) sua dispersão por todo o
território nacional, até os mais
longínquos refolhos dos rios do
Acre e do Amapá, o que explica,
em parte, a sobre-representação
política da comunidade; 2º) o vigor de suas instituições de solidariedade e sociabilidade, incomparavelmente superiores às dos individualistas italianos (embora a
solidariedade tivesse limites, como diz o professor Truzzi, ao lembrar a saborosa frase com acento
da colônia: "Todo libanês é brimo
até a brimeira falência"); 3º) a valorização da educação e do estudo, produzindo gerações de notáveis médicos, como Adib Jatene,
cientistas, professores universitários.
Não posso deixar aqui de evocar Antônio Houaiss, primeira
geração de filhos de libaneses no
Brasil, ao qual ficamos a dever o
mais completo dicionário da língua portuguesa no mundo.
Li há dias, na Folha, artigo de
Raduan Nassar e desse modo soube que, após escrever sobre a "Lavoura Arcaica", meu velho camarada da faculdade do largo de
São Francisco, que perdi de vista
há 40 anos, agora se dedica a nossa ingrata lavoura moderna.
Lembrei-me de nossas conversas
que se prolongavam noite a dentro, de sua indignação e veemência, durante a guerra de 1956,
diante da indiferença geral aos
sofrimentos dos palestinos, que
não chegavam a comover os participantes das assembléias do
Centro 11 de Agosto.
Tanta coisa a evocar, mas isso
basta como amostra do que devemos aos libaneses e sírios, a título
de homenagem sincera, não de
um patrício, mas de italianinho
do Brás, lá ao lado da 25 de Março, onde ia com frequência provar
os doces de fios finíssimos empapados em mel e que, na tarde sonolenta do Domingo de Carnaval, assistia, um tanto espantado,
no largo de São Bento deserto, aos
comerciantes da 25 de Março tomando carona dos festejos carnavalescos para dançar em roda,
com flautas e tambores, as danças
das aldeias ancestrais que haviam deixado atrás, só para homens, tão semelhantes, aliás, ao
nosso caipiríssimo catira...
Rubens Ricupero, 62, secretário-geral da
Unctad (Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento) e ex-ministro da Fazenda (governo Itamar Franco), é
autor de "O Ponto Ótimo da Crise" (editora
Revan). Escreve aos domingos nesta coluna.
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