São Paulo, Domingo, 29 de Agosto de 1999
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OPINIÃO ECONÔMICA
Patrícios, mascates e deputados

RUBENS RICUPERO

Em 1961 ou 62, ouvi do finado Emílio Carlos que eram mais de 50 os integrantes do que ele chamava de "bancada da República Árabe Unida" no Congresso Nacional (muito menor então do que em nossos dias). Quantos serão hoje? Levantamento feito em 1987 e restrito à comunidade albanesa recenseou 33 deputados federais, sete senadores e dois governadores de Estado, sem contar ministros, deputados estaduais, prefeitos etc. São dados que destacam dois fatos notáveis relativos aos libaneses e, em boa medida, também aos sírios, palestinos e outros árabes.
O primeiro é que, país altamente deficitário no comércio (exportações de US$ 600 milhões contra importações de US$ 7,5 bilhões), o que o Líbano mais exporta mesmo são libaneses. O segundo é o êxito extraordinário de integração e mobilidade social e, em matéria de representação política, provavelmente sem paralelo com outras comunidades, de libaneses, sírios e árabes em geral. Esse último aspecto não é, como se sabe, particularidade do Brasil, mas de toda a América Latina, onde diversos descendentes de árabes chegaram à presidência dos respectivos países, como Menem, na Argentina, Turbay, na Colômbia, mais de um no Equador, inclusive o atual.
Acabo de ler e recomendo vivamente a meus leitores excelente estudo sobre "Sírios e Libaneses e seus Descendentes na Sociedade Paulista", do professor da Universidade de São Paulo Oswaldo Truzzi, parte da coletânea "Fazer a América", organizada por Boris Fausto. Nele se registra o paradoxo de que, pequenos agricultores, originariamente, os libaneses e sírios bateram de cara, no Brasil, com o latifúndio cafeeiro que lhes vedava o acesso à terra. Tiveram, assim, de converter-se em vendedores itinerantes, os mascates, de quem se tornaram praticamente a encarnação quase exclusiva. Logo expulsaram do ramo os portugueses, mais conservadores, e os tenazes calabreses, que acabaram tendo de voltar-se para o comércio de peixes e verduras. Como mascates que percorriam as fazendas cumpriram valioso papel social, ao oferecer aos colonos a possibilidade de se libertar da escravidão criada pelo endividamento em relação ao armazém ou "venda" dos fazendeiros.
Observa o professor Truzzi: "Não seria demais afirmar que foram os sírios e libaneses que no Brasil "inventaram o comércio popular'". Dá as razões, citando o que dizia dos mascates outro estudioso, Clark Knowlton: "Não tinham preço fixo (...) Viviam com muito pouco. Se o freguês não podia pagar o dinheiro, o mascate aceitava em troca borracha, gado, café, ouro (...) Os sírios e libaneses também estavam dispostos a conceder crédito até por um ano de cada vez. Devido a sua flexibilidade e disposição de correr riscos, poucas nacionalidades podiam competir com eles".
Não demorou para que, de itinerantes, passassem a lojistas fixos, especializando-se sobretudo em tecidos e armarinhos. O passo seguinte foi a grande indústria têxtil e de confecções, capítulo da industrialização brasileira de que foram os principais protagonistas. No espaço de uma geração completaram a integração vertical do setor, da produção em massa até a venda na porta do freguês.
Não se pense que essa inventividade de cunho popular seja coisa do passado. Agora mesmo, uma querida amiga minha deu-se conta do que talvez esteja a passar despercebido de sociólogos e marqueteiros: que o grande número de conversões ao protestantismo evangélico criou mercado novo de características próprias. Os "crentes" necessitam ir ao culto de terno e gravata, mas era muito difícil encontrar essa indumentária a bom preço. Minha amiga teve grande êxito, ao fornecer a esse mercado ternos decentes e baratos. Sua perspicácia comercial redobra de mérito ao possibilitar a esses homens de fé afirmar seu recém-conquistado sentimento de dignidade e auto-estima.
Muito haveria ainda a dizer, mas, como nem tudo cabe no papel, fiquem ao menos registrados três traços da colônia libanesa e síria: 1º) sua dispersão por todo o território nacional, até os mais longínquos refolhos dos rios do Acre e do Amapá, o que explica, em parte, a sobre-representação política da comunidade; 2º) o vigor de suas instituições de solidariedade e sociabilidade, incomparavelmente superiores às dos individualistas italianos (embora a solidariedade tivesse limites, como diz o professor Truzzi, ao lembrar a saborosa frase com acento da colônia: "Todo libanês é brimo até a brimeira falência"); 3º) a valorização da educação e do estudo, produzindo gerações de notáveis médicos, como Adib Jatene, cientistas, professores universitários.
Não posso deixar aqui de evocar Antônio Houaiss, primeira geração de filhos de libaneses no Brasil, ao qual ficamos a dever o mais completo dicionário da língua portuguesa no mundo.
Li há dias, na Folha, artigo de Raduan Nassar e desse modo soube que, após escrever sobre a "Lavoura Arcaica", meu velho camarada da faculdade do largo de São Francisco, que perdi de vista há 40 anos, agora se dedica a nossa ingrata lavoura moderna. Lembrei-me de nossas conversas que se prolongavam noite a dentro, de sua indignação e veemência, durante a guerra de 1956, diante da indiferença geral aos sofrimentos dos palestinos, que não chegavam a comover os participantes das assembléias do Centro 11 de Agosto.
Tanta coisa a evocar, mas isso basta como amostra do que devemos aos libaneses e sírios, a título de homenagem sincera, não de um patrício, mas de italianinho do Brás, lá ao lado da 25 de Março, onde ia com frequência provar os doces de fios finíssimos empapados em mel e que, na tarde sonolenta do Domingo de Carnaval, assistia, um tanto espantado, no largo de São Bento deserto, aos comerciantes da 25 de Março tomando carona dos festejos carnavalescos para dançar em roda, com flautas e tambores, as danças das aldeias ancestrais que haviam deixado atrás, só para homens, tão semelhantes, aliás, ao nosso caipiríssimo catira...


Rubens Ricupero, 62, secretário-geral da Unctad (Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento) e ex-ministro da Fazenda (governo Itamar Franco), é autor de "O Ponto Ótimo da Crise" (editora Revan). Escreve aos domingos nesta coluna.







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