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OUTONO DE PRAGA
Para Horst Koehler, a prosperidade "não é sustentável" sem o enfrentamento da questão da pobreza
Para FMI, privatização não resolve tudo
CLÓVIS ROSSI
ENVIADO ESPECIAL A PRAGA
O FMI (Fundo Monetário Internacional) tem, sim, coração.
Palavra de seu novo diretor-gerente, Horst Koehler, depois de
manifestações que incendiaram
Praga, nas quais alguns gritavam:
"O FMI mata crianças".
Koehler, polonês de nascimento, naturalizado alemão, 57 anos,
recebeu na manhã de ontem um
grupo de quatro jornalistas (um
de cada região, excetuada a Europa) em um Centro de Congressos
ainda sitiado pela polícia.
Falou menos sobre finanças, afinal o eixo de atuação de sua organização, e mais de pobreza, a nova
ênfase do Fundo.
Para Koehler, a prosperidade
sem precedentes do mundo moderno "não é sustentável" sem o
enfrentamento da questão da pobreza.
O diretor-gerente falou também
de privatizações com um leve desvio em relação à ortodoxia que
manda defendê-las como uma espécie de ordem divina.
"Não se deve ser ingênuo e dizer
que a privatização, por si só, resolve todos os problemas."
A seguir, um resumo da conversa de Koehler com a Folha, "The
New York Times" (EUA), "Business Day" (África do Sul) e "The
Hindu" (Índia).
"The New York Times" - Como o
sr. imagina tornar politicamente
possível a nova ênfase no combate
à pobreza e o pedido para que os
países ricos abram seus mercados?
Horst Koehler - O certo não é
apenas falar sobre pobreza mas
também pensar em como podemos definir uma estratégia para
lutar contra ela, porque esta enorme desigualdade de renda -e isso significa pobreza- é de fato
uma ameaça para a paz e o bem-estar no futuro.
A prosperidade que temos hoje
de forma sem precedentes no
mundo ocidental não é sustentável se não houver uma estratégia
para que todos os líderes mundiais compreendam que há só um
mundo, e que os problemas da
pobreza não podem ficar confinados nos países pobres.
O debate crítico sobre globalização é valioso, porque ele aumenta
a consciência no mundo ocidental sobre esses temas e sobre a dimensão desse problema.
Minha experiência é a de que as
chances de fazer progressos na resolução de problemas são tanto
maiores quanto maior a consciência sobre a dimensão deles.
Eu sou em princípio um otimista e acho que está emergindo nos
países industrializados a consciência de que não podem dissociar-se dos pobres.
Também acho que, depois desse
pesadelo de décadas de Guerra
Fria, as pessoas podem enxergar o
mundo como um só mundo. Podem definir novos objetivos, objetivos positivos, um sentido para
suas vidas.
Nós podemos realmente mostrar, de maneira muito concreta,
onde há possibilidades de mudanças e de definição de políticas
que beneficiem a todos.
"Todos" quer dizer os pobres, é
claro, mas também pessoas no
mundo industrializado. Não acho
que se deva pensar que, se os pobres melhorarem, será à custa dos
ricos. Há trabalhadores no mundo industrializado que não são
ainda tão ricos que não tenham
inquietações a respeito da globalização.
Temos que demonstrar que é
necessário o crescimento da economia. É necessário que o bolo
cresça para que não tratemos apenas de redistribuir o mesmo tamanho de bolo.
Temos que trabalhar para criar
uma situação em que todos ganhem e fazer com que os países
pobres participem dessa situação.
O que a economia norte-americana demonstra, com essa enorme
onda de novas tecnologias e investimentos, é que não devemos
ser pessimistas sobre a possibilidade de organizar o crescimento.
Se você olhar cuidadosamente o
mundo ocidental, detectará que
mais e mais pessoas estão conscientes de que podem até obter
vantagens com produtos de países em desenvolvimento, porque
não são produtos ruins e seus preços são mais baixos.
É preciso igualmente aumentar
a ODA (sigla em inglês para Assistência Oficial ao Desenvolvimento, as doações dos países ricos aos
pobres). Quando se vê como é intensa a coleta de recursos para caridade no mundo ocidental, não é
preciso ser pessimista a respeito
do cumprimento da promessa de
dedicar 0,7% do PIB para a ODA
(promessa feita pelos países ricos,
mas só cumprida por alguns).
As atividades das Organizações
Não-Governamentais e da sociedade civil se concentraram fortemente na questão do alívio da dívida (dos países pobres). Estou
certo de que elas detectarão também esse item (da ODA) e eu as
encorajo a fazê-lo.
Sou otimista, embora não tenha
ilusões a respeito das dificuldades
da tarefa. Mas necessitamos ter
uma visão e trabalhar com categorias morais.
Por fim, são os próprios países
pobres os que têm a responsabilidade principal no enfrentamento
da questão. Nós sabemos que a
corrupção é um dos principais
obstáculos ao progresso econômico e social. E, particularmente
na África, os conflitos armados
são o principal problema.
Podemos ter diferentes visões
sobre as causas da pobreza, que
retroagem ao colonialismo. Mas
não há desculpa para não haver
uma ação decisiva dos próprios
países pobres para uma melhor
governança e para conter e encerrar os conflitos armados.
Folha - Nos últimos dez anos, foi
pequena a redução da pobreza.
Nos mesmos dez anos, a imensa
maioria dos países adotou políticas
semelhantes, chamadas de neoliberais, de Consenso de Washington ou do que se quiser. Não seria a
hora de analisar se tais políticas
são insuficientes ou até inadequadas para enfrentar o problema da
pobreza?
Koehler - O problema é que estamos sempre caindo de volta nesse
tipo de posição ideológica. Eu até
posso ser muito crítico a respeito
dessas posições do passado, porque fui presidente do Berd (Banco
Europeu de Reconstrução e Desenvolvimento, criado para ajudar na transição para o capitalismo os países que deixavam o comunismo).
Nesse posto, tive certas dificuldades com a falta de compreensão
sobre privatização. A privatização
é correta, mas você tem que saber
fazê-la. Você tem que saber quem
é a pessoa que se torna dona de
uma empresa privatizada. Se é
um bandido, não há progresso na
comparação com uma companhia estatal que é pesadamente
ineficiente.
Para mim, o Consenso de Washington não significa nada.
Mas é preciso dizer que os países devem usar a experiência do
setor privado em matéria de produtividade e criatividade.
Devem também lembrar que
economias centralmente planejadas (as economias dos países comunistas) não funcionam, o que
está historicamente comprovado.
Mas não se deve ser ingênuo e
dizer que a privatização, por si só,
resolve todos os problemas. Confie no setor privado, mas dê a ele
regras de forma que realmente
trabalhe para o bem público.
"The Hindu" - Reformulando um
pouco a pergunta anterior, não seria o caso de falar dos riscos e vantagens da globalização?
Koehler - Se a globalização for
definida como integração das
economias em uma economia
global, é uma coisa boa para enfrentar a pobreza. Gera economia
de escala e abre mercados para os
países pobres.
Acho que ainda é válida a velha
constatação de que comércio é
melhor que ajuda. A integração
na economia global tem todos os
ingredientes para ser positiva em
termos de produtividade, de preços de bens de consumo e de promoção de bons empregos e renda
no mundo pobre.
Mas não hesito em dizer que há
necessidade de moldar a globalização, de definirmos bens públicos globais, sem, ao mesmo tempo, voltar ao passado e impor
uma instituição autoritária para
resolver o problema.
Precisamos pensar em governança global. Instituições como o
FMI, o Banco Mundial, a Organização Mundial do Comércio e as
Nações Unidas são uma moldura
para uma governança global, mas
hesito em pensar que deve haver
uma instituição dirigindo e tendo
tudo sob controle. Não funciona.
Assim, temos que ter essa idéia
de bens públicos globais. Temos
que ter instituições como o FMI,
nas quais se organiza a cooperação. Não acho que necessitamos
de uma superautoridade para o
mundo, que seja responsável pela
alocação de recursos.
"Business Day" - O sr. tem dito
que o FMI deve ser uma organização que ouve e que aprende. O que
o sr. já aprendeu desde que está no
cargo?
Koehler - Aprendi muito. Por
exemplo, na minha viagem à África, aprendi sobre o peso burocrático de nossas chamadas condicionalidades (as condições que o
Fundo impõe para conceder créditos a seus países-membros).
Exigimos que os países produzam números, produzam indicadores econômicos e sociais.
Se eu estivesse a cargo desses
países, diria que quero ver os problemas resolvidos e não toda essa
burocracia. Mas, por outro lado,
necessitamos ter certa transparência e um enfoque racional. Logo, necessitamos certos números.
Mas deveríamos capacitar esses
países para entregar tais números
de maneira racional, em vez de
pedi-los sem ter a preocupação do
modo como são produzidos.
O que temos que fazer é racionalizar o processo nos países pobres, de tal forma que se tornem
conscientes de que só podem gastar o dinheiro uma vez. Se gastarem em consumo, não poderão
gastar em investimento.
Temos também que estar conscientes de que o modelo "tamanho único" (uma fórmula serve
para todos os países) não funciona e subestima a capacidade dos
próprios países de definirem as
boas políticas, baseados nas próprias raízes históricas e culturais.
Não pode vir alguém de Washington, seja o diretor-gerente,
seja um membro do staff, treinados no sistema ocidental, e dizer
que o Orçamento tem que ser
equilibrado com números exatos
até depois da vírgula.
Nesse contexto, a comunicação
com a sociedade civil é valiosa. Estive em seis países da África, e o
contato com a sociedade civil ajudou muito, mais do que o que vimos aqui em Praga.
Essa gente não tem tempo para
lutar contra o capitalismo. O ponto deles é: vocês vieram aqui para
nos ajudar, mas têm que entender
como é difícil cumprir o que vocês pedem.
Saí desses encontros com a impressão de que temos que mudar
nosso conceito de propriedade do
programa, o que significa ouvir os
países porque eles sabem melhor
o que podem ou não aceitar.
Folha - Tudo leva a crer que as
próximas reuniões do Fundo serão
cercadas de manifestações. O que o
sr. sugere, além de reforço do policiamento, como resposta para as
organizações não-violentas, que
parecem ser majoritárias?
Koehler - O que eu lamento é que
essas manifestações deixam a impressão de que esta instituição é
formada por burocratas sem coração, que não se incomodam
com os pobres. Nosso staff se
preocupa, sim, com os pobres.
O que temos que fazer é ser
abertos para explicar nossas políticas. É publicar nossos documentos de avaliação (dos países).
Há um processo de abertura no
Fundo que, na comparação com
dez anos atrás, é inacreditável. As
pessoas que dizem que o FMI é
uma instituição fechada repetem
essa tese, mas não estão conscientes de que mudamos. Às vezes,
acho que não se importam com o
que mudou, apenas querem repetir seus preconceitos.
O processo de mudança está em
pleno andamento. E repito que
essa discussão ajuda a despertar a
consciência no mundo ocidental
para a necessidade de mudanças.
Quero ver a discussão sobre globalização nos Parlamentos. Nossos acionistas são governos, em
geral democraticamente eleitos e,
portanto, legítimos. Mas é bom
que tenhamos esse debate no Parlamento, para que cheguem a
conclusões e dêem a elas consequências orçamentárias.
A questão da pobreza não pode
ser resolvida apenas nas ruas.
Tem que ser resolvida também
nos Parlamentos. Afinal, acredito
firmemente na democracia.
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