São Paulo, sexta-feira, 29 de setembro de 2000

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OUTONO DE PRAGA
Para Horst Koehler, a prosperidade "não é sustentável" sem o enfrentamento da questão da pobreza
Para FMI, privatização não resolve tudo

CLÓVIS ROSSI
ENVIADO ESPECIAL A PRAGA

O FMI (Fundo Monetário Internacional) tem, sim, coração.
Palavra de seu novo diretor-gerente, Horst Koehler, depois de manifestações que incendiaram Praga, nas quais alguns gritavam: "O FMI mata crianças".
Koehler, polonês de nascimento, naturalizado alemão, 57 anos, recebeu na manhã de ontem um grupo de quatro jornalistas (um de cada região, excetuada a Europa) em um Centro de Congressos ainda sitiado pela polícia.
Falou menos sobre finanças, afinal o eixo de atuação de sua organização, e mais de pobreza, a nova ênfase do Fundo.
Para Koehler, a prosperidade sem precedentes do mundo moderno "não é sustentável" sem o enfrentamento da questão da pobreza.
O diretor-gerente falou também de privatizações com um leve desvio em relação à ortodoxia que manda defendê-las como uma espécie de ordem divina.
"Não se deve ser ingênuo e dizer que a privatização, por si só, resolve todos os problemas."
A seguir, um resumo da conversa de Koehler com a Folha, "The New York Times" (EUA), "Business Day" (África do Sul) e "The Hindu" (Índia).

"The New York Times" - Como o sr. imagina tornar politicamente possível a nova ênfase no combate à pobreza e o pedido para que os países ricos abram seus mercados?
Horst Koehler -
O certo não é apenas falar sobre pobreza mas também pensar em como podemos definir uma estratégia para lutar contra ela, porque esta enorme desigualdade de renda -e isso significa pobreza- é de fato uma ameaça para a paz e o bem-estar no futuro.
A prosperidade que temos hoje de forma sem precedentes no mundo ocidental não é sustentável se não houver uma estratégia para que todos os líderes mundiais compreendam que há só um mundo, e que os problemas da pobreza não podem ficar confinados nos países pobres.
O debate crítico sobre globalização é valioso, porque ele aumenta a consciência no mundo ocidental sobre esses temas e sobre a dimensão desse problema.
Minha experiência é a de que as chances de fazer progressos na resolução de problemas são tanto maiores quanto maior a consciência sobre a dimensão deles.
Eu sou em princípio um otimista e acho que está emergindo nos países industrializados a consciência de que não podem dissociar-se dos pobres.
Também acho que, depois desse pesadelo de décadas de Guerra Fria, as pessoas podem enxergar o mundo como um só mundo. Podem definir novos objetivos, objetivos positivos, um sentido para suas vidas.
Nós podemos realmente mostrar, de maneira muito concreta, onde há possibilidades de mudanças e de definição de políticas que beneficiem a todos.
"Todos" quer dizer os pobres, é claro, mas também pessoas no mundo industrializado. Não acho que se deva pensar que, se os pobres melhorarem, será à custa dos ricos. Há trabalhadores no mundo industrializado que não são ainda tão ricos que não tenham inquietações a respeito da globalização.
Temos que demonstrar que é necessário o crescimento da economia. É necessário que o bolo cresça para que não tratemos apenas de redistribuir o mesmo tamanho de bolo.
Temos que trabalhar para criar uma situação em que todos ganhem e fazer com que os países pobres participem dessa situação. O que a economia norte-americana demonstra, com essa enorme onda de novas tecnologias e investimentos, é que não devemos ser pessimistas sobre a possibilidade de organizar o crescimento.
Se você olhar cuidadosamente o mundo ocidental, detectará que mais e mais pessoas estão conscientes de que podem até obter vantagens com produtos de países em desenvolvimento, porque não são produtos ruins e seus preços são mais baixos.
É preciso igualmente aumentar a ODA (sigla em inglês para Assistência Oficial ao Desenvolvimento, as doações dos países ricos aos pobres). Quando se vê como é intensa a coleta de recursos para caridade no mundo ocidental, não é preciso ser pessimista a respeito do cumprimento da promessa de dedicar 0,7% do PIB para a ODA (promessa feita pelos países ricos, mas só cumprida por alguns).
As atividades das Organizações Não-Governamentais e da sociedade civil se concentraram fortemente na questão do alívio da dívida (dos países pobres). Estou certo de que elas detectarão também esse item (da ODA) e eu as encorajo a fazê-lo.
Sou otimista, embora não tenha ilusões a respeito das dificuldades da tarefa. Mas necessitamos ter uma visão e trabalhar com categorias morais.
Por fim, são os próprios países pobres os que têm a responsabilidade principal no enfrentamento da questão. Nós sabemos que a corrupção é um dos principais obstáculos ao progresso econômico e social. E, particularmente na África, os conflitos armados são o principal problema.
Podemos ter diferentes visões sobre as causas da pobreza, que retroagem ao colonialismo. Mas não há desculpa para não haver uma ação decisiva dos próprios países pobres para uma melhor governança e para conter e encerrar os conflitos armados.

Folha - Nos últimos dez anos, foi pequena a redução da pobreza. Nos mesmos dez anos, a imensa maioria dos países adotou políticas semelhantes, chamadas de neoliberais, de Consenso de Washington ou do que se quiser. Não seria a hora de analisar se tais políticas são insuficientes ou até inadequadas para enfrentar o problema da pobreza?
Koehler -
O problema é que estamos sempre caindo de volta nesse tipo de posição ideológica. Eu até posso ser muito crítico a respeito dessas posições do passado, porque fui presidente do Berd (Banco Europeu de Reconstrução e Desenvolvimento, criado para ajudar na transição para o capitalismo os países que deixavam o comunismo).
Nesse posto, tive certas dificuldades com a falta de compreensão sobre privatização. A privatização é correta, mas você tem que saber fazê-la. Você tem que saber quem é a pessoa que se torna dona de uma empresa privatizada. Se é um bandido, não há progresso na comparação com uma companhia estatal que é pesadamente ineficiente.
Para mim, o Consenso de Washington não significa nada.
Mas é preciso dizer que os países devem usar a experiência do setor privado em matéria de produtividade e criatividade.
Devem também lembrar que economias centralmente planejadas (as economias dos países comunistas) não funcionam, o que está historicamente comprovado.
Mas não se deve ser ingênuo e dizer que a privatização, por si só, resolve todos os problemas. Confie no setor privado, mas dê a ele regras de forma que realmente trabalhe para o bem público.

"The Hindu" - Reformulando um pouco a pergunta anterior, não seria o caso de falar dos riscos e vantagens da globalização?
Koehler -
Se a globalização for definida como integração das economias em uma economia global, é uma coisa boa para enfrentar a pobreza. Gera economia de escala e abre mercados para os países pobres.
Acho que ainda é válida a velha constatação de que comércio é melhor que ajuda. A integração na economia global tem todos os ingredientes para ser positiva em termos de produtividade, de preços de bens de consumo e de promoção de bons empregos e renda no mundo pobre.
Mas não hesito em dizer que há necessidade de moldar a globalização, de definirmos bens públicos globais, sem, ao mesmo tempo, voltar ao passado e impor uma instituição autoritária para resolver o problema.
Precisamos pensar em governança global. Instituições como o FMI, o Banco Mundial, a Organização Mundial do Comércio e as Nações Unidas são uma moldura para uma governança global, mas hesito em pensar que deve haver uma instituição dirigindo e tendo tudo sob controle. Não funciona.
Assim, temos que ter essa idéia de bens públicos globais. Temos que ter instituições como o FMI, nas quais se organiza a cooperação. Não acho que necessitamos de uma superautoridade para o mundo, que seja responsável pela alocação de recursos.

"Business Day" - O sr. tem dito que o FMI deve ser uma organização que ouve e que aprende. O que o sr. já aprendeu desde que está no cargo?
Koehler -
Aprendi muito. Por exemplo, na minha viagem à África, aprendi sobre o peso burocrático de nossas chamadas condicionalidades (as condições que o Fundo impõe para conceder créditos a seus países-membros).
Exigimos que os países produzam números, produzam indicadores econômicos e sociais.
Se eu estivesse a cargo desses países, diria que quero ver os problemas resolvidos e não toda essa burocracia. Mas, por outro lado, necessitamos ter certa transparência e um enfoque racional. Logo, necessitamos certos números. Mas deveríamos capacitar esses países para entregar tais números de maneira racional, em vez de pedi-los sem ter a preocupação do modo como são produzidos.
O que temos que fazer é racionalizar o processo nos países pobres, de tal forma que se tornem conscientes de que só podem gastar o dinheiro uma vez. Se gastarem em consumo, não poderão gastar em investimento.
Temos também que estar conscientes de que o modelo "tamanho único" (uma fórmula serve para todos os países) não funciona e subestima a capacidade dos próprios países de definirem as boas políticas, baseados nas próprias raízes históricas e culturais.
Não pode vir alguém de Washington, seja o diretor-gerente, seja um membro do staff, treinados no sistema ocidental, e dizer que o Orçamento tem que ser equilibrado com números exatos até depois da vírgula.
Nesse contexto, a comunicação com a sociedade civil é valiosa. Estive em seis países da África, e o contato com a sociedade civil ajudou muito, mais do que o que vimos aqui em Praga.
Essa gente não tem tempo para lutar contra o capitalismo. O ponto deles é: vocês vieram aqui para nos ajudar, mas têm que entender como é difícil cumprir o que vocês pedem.
Saí desses encontros com a impressão de que temos que mudar nosso conceito de propriedade do programa, o que significa ouvir os países porque eles sabem melhor o que podem ou não aceitar.

Folha - Tudo leva a crer que as próximas reuniões do Fundo serão cercadas de manifestações. O que o sr. sugere, além de reforço do policiamento, como resposta para as organizações não-violentas, que parecem ser majoritárias?
Koehler -
O que eu lamento é que essas manifestações deixam a impressão de que esta instituição é formada por burocratas sem coração, que não se incomodam com os pobres. Nosso staff se preocupa, sim, com os pobres.
O que temos que fazer é ser abertos para explicar nossas políticas. É publicar nossos documentos de avaliação (dos países).
Há um processo de abertura no Fundo que, na comparação com dez anos atrás, é inacreditável. As pessoas que dizem que o FMI é uma instituição fechada repetem essa tese, mas não estão conscientes de que mudamos. Às vezes, acho que não se importam com o que mudou, apenas querem repetir seus preconceitos.
O processo de mudança está em pleno andamento. E repito que essa discussão ajuda a despertar a consciência no mundo ocidental para a necessidade de mudanças. Quero ver a discussão sobre globalização nos Parlamentos. Nossos acionistas são governos, em geral democraticamente eleitos e, portanto, legítimos. Mas é bom que tenhamos esse debate no Parlamento, para que cheguem a conclusões e dêem a elas consequências orçamentárias.
A questão da pobreza não pode ser resolvida apenas nas ruas. Tem que ser resolvida também nos Parlamentos. Afinal, acredito firmemente na democracia.


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