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Califórnia faz mais vítimas na crise nos EUA
Estado é recordista em ordens de despejo e tem cidades com desemprego em torno de 30%; média americana é de 10,2%
Região, a mais rica do país,
corta benefícios sociais e
obriga servidores a folgas
não remuneradas para
conter deficit bilionários
FERNANDO CANZIAN
ENVIADO ESPECIAL À CALIFÓRNIA
Aposentado depois de 50
anos atuando como médico, o
californiano William Weil, 78,
voltou a trabalhar há menos de
quatro meses, três dias por semana, em Venice Beach, praia
do litoral de Los Angeles.
"Estava numa boa, até a porcaria da economia vir abaixo",
diz Weil. Ele agora prescreve
receitas médicas legais que dão
a seus pacientes o direito de
comprar, portar e fumar maconha livremente na Califórnia.
O Estado aprovou lei em
1996 que permite o uso da erva
para pessoas com algumas
doenças crônicas, como glaucoma. Mas seu uso se disseminou
e há hoje centenas de clínicas e
mais de mil locais onde a maconha é vendida.
A "Kush Doctor", onde Weil
atua, oferece seus serviços a
qualquer um. A receita custa
US$ 150 e vale por um ano. É
obtida em dez minutos alegando-se uma simples dificuldade
de dormir. Na porta ao lado, o
"remédio" é vendido por peso.
"Meu fundo de aposentadoria encolheu e não dava mais
para pagar coisas como o Riviera, onde jogo golfe. Faço um
bom dinheiro aqui", diz Weil.
O médico se considera uma
vítima "light" da atual crise
econômica nos EUA, que atingiu primeiro e mais fundo a Califórnia, em particular o sul.
El Centro, a 300 km de Los
Angeles, por exemplo, tem hoje
a maior taxa de desemprego do
país: 30,1%, quase três vezes a
média nacional de 10,2% -no
Estado, ela é de 12,5%.
A Califórnia é o Estado mais
rico dos EUA, com um PIB de
US$ 1,8 trilhão e 38 milhões de
residentes. Se fosse um país, seria a oitava economia do mundo (o Brasil seria a nona).
Tem uma infraestrutura invejável e empresas de ponta como Apple, Google e Intel. Abriga ainda a bilionária indústria
cinematográfica do país.
Mas foi na Califórnia onde a
chamada "bolha imobiliária",
estopim da crise global, explodiu primeiro e com mais força,
embaçando o "glamour hollywoodiano" do Estado.
Uma entre cada 156 famílias
na Califórnia enfrenta hoje
processo de despejo ou recebeu
notificação formal de que tem
dívidas imobiliárias em atraso
-o que pode levar, mais à frente, ao despejo. Na média do
país, uma entre 385 famílias está na mesma situação.
O Estado é líder nessas notificações. Em novembro, elas
ocorreram em número 50%
maior do que há um ano, levando milhares de pessoas a perder
seus imóveis.
Desabrigados
Clarance Williams, 53, entrou para essas estatísticas há
um mês. Hoje, dorme com outras 8.000 pessoas no chamado
"Skid Row", em Los Angeles.
"A crise me pegou novamente. A última vez que acabei aqui
foi em 1981, em outra recessão", diz Williams. Ele dividia
um imóvel com outras duas
pessoas até perder o emprego
de "faz-tudo" na prefeitura.
Agora, come diariamente no
Union Rescue Mission, um albergue para sem-tetos.
O "Skid Row" é uma área de
cerca de 40 quarteirões no centro de Los Angeles. Abriga a
maior população de sem-tetos
dos EUA, a maioria dormindo
em barracas de camping.
Uma lei local obriga os sem-teto a desfazer acampamento
entre as 6h30 e as 21h. Nesse
intervalo, eles perambulam pelos arredores até a noite.
Segundo Andy Bales, dirigente da "Union Rescue Mission", em 2009 sua organização
está ajudando 53% mais famílias que ficaram sem teto pela
primeira vez na vida na comparação com 2008.
Entre as 1.700 pessoas atendidas pela "Union Mission", há
224 famílias, como a de Derek
Russell, 31, pai viúvo de quatro
filhos que há quatro meses perdeu emprego e casa e foi parar
na rua pela primeira vez.
Para atender a todos, inclusive com alojamento, o albergue
gasta cerca de US$ 53 mil todos
os dias. O dinheiro é obtido em
doações de empresas, ONGs e
autoridades locais.
Boa parte das pessoas e famílias que acabaram no "Skid
Row" nesta recessão veio nos
últimos meses de Ontario, a 71
km de Los Angeles.
A cidade já abrigou uma das
maiores "tent cities" dos EUA,
onde milhares de pessoas dormem em barracas de camping e
têm como única infraestrutura
banheiros portáteis e chuveiros
de água fria.
Havia tanta gente no local
que há alguns meses a Prefeitura de Ontario expulsou os que
não podiam provar que eram
residentes da cidade antes de se
tornarem sem-teto. O local
também foi cercado, é policiado 24 horas e ninguém pode
entrar sem um bracelete específico.
Julia Castro, 53, foi uma das
que ficaram. "Havia muita gente aqui de Los Angeles que teve
de voltar." Ela diz ter ficado
sem teto há dois anos e hoje sobrevive com US$ 109 ao mês
em cupons estaduais para comprar alimentos, cozidos em fogueiras improvisadas.
Programas ameaçados
Muitos dos programas de
ajuda bancados pelo governo
da Califórnia estão sob forte
risco de ficar sem fundos.
A previsão é que o Estado tenha de conviver com deficit
anual de US$ 21 bilhões pelos
próximos três anos em seu Orçamento total -de cerca de
US$ 85 bilhões anuais.
Desde fevereiro, o governo
vem se endividando pesadamente com a venda de títulos,
cortou bilhões de dólares de
serviços sociais e aumentou
emergencialmente os impostos
sobre os mais ricos.
Passou a obrigar ainda cerca
de 200 mil funcionários públicos a não trabalhar (nem receber) pelo menos três dias por
mês. Outros 19 dos 50 Estados
norte-americanos fazem isso.
Muitas das pessoas que recebem benefícios e pensões estaduais já são prejudicadas.
A moradora de El Centro
Delmalédia Torres, por exemplo, viu os benefícios do marido, Luiz (cego em consequência de diabetes), diminuírem de
quase US$ 1.000 para menos de
US$ 800/mês no último ano.
Hoje, ela tem uma conta de
US$ 200 de luz e outra de US$
58 de gás atrasadas. Mas prioriza pagar em dia o aluguel de
US$ 400 para não ser despejada como alguns ex-vizinhos.
El Centro fica no meio do Imperial Valley, próximo da fronteira com o México, e está sendo duramente afetado pela brutal redução da atividade na
construção civil, que emprega
pessoal menos qualificado.
O mexicano Pedro Martins,
42, por exemplo, viu a atividade
de seu pequeno negócio de limpeza e conservação de jardins
em Imperial, vizinha a El Centro, encolher a ponto de ter de
cortar de US$ 13 para US$ 8,25
o preço da hora de trabalho.
Mesmo fora desse epicentro
do desemprego, o estouro da
"bolha" imobiliária se traduziu
em milhões de demissões em
centenas de cidades.
Em San Diego, onde o desemprego é menor do que a média estadual, o setor imobiliário
residencial permanece "estancado", segundo a agente Claudine Scott, da Home Realty. O
que a preocupa agora é uma nova onda de calotes no setor comercial, também em baixa.
Um dos alijados desse setor é
o ex-microempresário da construção Raymond Barron. Há
três semanas, depois de muito
penar, passou a trabalhar em
uma concessionária de veículos
em San Diego.
Sua prioridade agora é pagar
o aluguel e não ser despejado da
casa que divide com outros três
companheiros. Nos dias anteriores à visita da reportagem,
Barron não havia conseguido
vender nenhum automóvel.
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