São Paulo, domingo, 29 de novembro de 2009

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Califórnia faz mais vítimas na crise nos EUA

Estado é recordista em ordens de despejo e tem cidades com desemprego em torno de 30%; média americana é de 10,2%

Região, a mais rica do país, corta benefícios sociais e obriga servidores a folgas não remuneradas para conter deficit bilionários


FERNANDO CANZIAN
ENVIADO ESPECIAL À CALIFÓRNIA

Aposentado depois de 50 anos atuando como médico, o californiano William Weil, 78, voltou a trabalhar há menos de quatro meses, três dias por semana, em Venice Beach, praia do litoral de Los Angeles.
"Estava numa boa, até a porcaria da economia vir abaixo", diz Weil. Ele agora prescreve receitas médicas legais que dão a seus pacientes o direito de comprar, portar e fumar maconha livremente na Califórnia.
O Estado aprovou lei em 1996 que permite o uso da erva para pessoas com algumas doenças crônicas, como glaucoma. Mas seu uso se disseminou e há hoje centenas de clínicas e mais de mil locais onde a maconha é vendida.
A "Kush Doctor", onde Weil atua, oferece seus serviços a qualquer um. A receita custa US$ 150 e vale por um ano. É obtida em dez minutos alegando-se uma simples dificuldade de dormir. Na porta ao lado, o "remédio" é vendido por peso.
"Meu fundo de aposentadoria encolheu e não dava mais para pagar coisas como o Riviera, onde jogo golfe. Faço um bom dinheiro aqui", diz Weil.
O médico se considera uma vítima "light" da atual crise econômica nos EUA, que atingiu primeiro e mais fundo a Califórnia, em particular o sul.
El Centro, a 300 km de Los Angeles, por exemplo, tem hoje a maior taxa de desemprego do país: 30,1%, quase três vezes a média nacional de 10,2% -no Estado, ela é de 12,5%.
A Califórnia é o Estado mais rico dos EUA, com um PIB de US$ 1,8 trilhão e 38 milhões de residentes. Se fosse um país, seria a oitava economia do mundo (o Brasil seria a nona).
Tem uma infraestrutura invejável e empresas de ponta como Apple, Google e Intel. Abriga ainda a bilionária indústria cinematográfica do país.
Mas foi na Califórnia onde a chamada "bolha imobiliária", estopim da crise global, explodiu primeiro e com mais força, embaçando o "glamour hollywoodiano" do Estado.
Uma entre cada 156 famílias na Califórnia enfrenta hoje processo de despejo ou recebeu notificação formal de que tem dívidas imobiliárias em atraso -o que pode levar, mais à frente, ao despejo. Na média do país, uma entre 385 famílias está na mesma situação.
O Estado é líder nessas notificações. Em novembro, elas ocorreram em número 50% maior do que há um ano, levando milhares de pessoas a perder seus imóveis.

Desabrigados
Clarance Williams, 53, entrou para essas estatísticas há um mês. Hoje, dorme com outras 8.000 pessoas no chamado "Skid Row", em Los Angeles.
"A crise me pegou novamente. A última vez que acabei aqui foi em 1981, em outra recessão", diz Williams. Ele dividia um imóvel com outras duas pessoas até perder o emprego de "faz-tudo" na prefeitura. Agora, come diariamente no Union Rescue Mission, um albergue para sem-tetos.
O "Skid Row" é uma área de cerca de 40 quarteirões no centro de Los Angeles. Abriga a maior população de sem-tetos dos EUA, a maioria dormindo em barracas de camping.
Uma lei local obriga os sem-teto a desfazer acampamento entre as 6h30 e as 21h. Nesse intervalo, eles perambulam pelos arredores até a noite.
Segundo Andy Bales, dirigente da "Union Rescue Mission", em 2009 sua organização está ajudando 53% mais famílias que ficaram sem teto pela primeira vez na vida na comparação com 2008.
Entre as 1.700 pessoas atendidas pela "Union Mission", há 224 famílias, como a de Derek Russell, 31, pai viúvo de quatro filhos que há quatro meses perdeu emprego e casa e foi parar na rua pela primeira vez.
Para atender a todos, inclusive com alojamento, o albergue gasta cerca de US$ 53 mil todos os dias. O dinheiro é obtido em doações de empresas, ONGs e autoridades locais.
Boa parte das pessoas e famílias que acabaram no "Skid Row" nesta recessão veio nos últimos meses de Ontario, a 71 km de Los Angeles.
A cidade já abrigou uma das maiores "tent cities" dos EUA, onde milhares de pessoas dormem em barracas de camping e têm como única infraestrutura banheiros portáteis e chuveiros de água fria.
Havia tanta gente no local que há alguns meses a Prefeitura de Ontario expulsou os que não podiam provar que eram residentes da cidade antes de se tornarem sem-teto. O local também foi cercado, é policiado 24 horas e ninguém pode entrar sem um bracelete específico.
Julia Castro, 53, foi uma das que ficaram. "Havia muita gente aqui de Los Angeles que teve de voltar." Ela diz ter ficado sem teto há dois anos e hoje sobrevive com US$ 109 ao mês em cupons estaduais para comprar alimentos, cozidos em fogueiras improvisadas.

Programas ameaçados
Muitos dos programas de ajuda bancados pelo governo da Califórnia estão sob forte risco de ficar sem fundos.
A previsão é que o Estado tenha de conviver com deficit anual de US$ 21 bilhões pelos próximos três anos em seu Orçamento total -de cerca de US$ 85 bilhões anuais.
Desde fevereiro, o governo vem se endividando pesadamente com a venda de títulos, cortou bilhões de dólares de serviços sociais e aumentou emergencialmente os impostos sobre os mais ricos.
Passou a obrigar ainda cerca de 200 mil funcionários públicos a não trabalhar (nem receber) pelo menos três dias por mês. Outros 19 dos 50 Estados norte-americanos fazem isso.
Muitas das pessoas que recebem benefícios e pensões estaduais já são prejudicadas.
A moradora de El Centro Delmalédia Torres, por exemplo, viu os benefícios do marido, Luiz (cego em consequência de diabetes), diminuírem de quase US$ 1.000 para menos de US$ 800/mês no último ano.
Hoje, ela tem uma conta de US$ 200 de luz e outra de US$ 58 de gás atrasadas. Mas prioriza pagar em dia o aluguel de US$ 400 para não ser despejada como alguns ex-vizinhos.
El Centro fica no meio do Imperial Valley, próximo da fronteira com o México, e está sendo duramente afetado pela brutal redução da atividade na construção civil, que emprega pessoal menos qualificado.
O mexicano Pedro Martins, 42, por exemplo, viu a atividade de seu pequeno negócio de limpeza e conservação de jardins em Imperial, vizinha a El Centro, encolher a ponto de ter de cortar de US$ 13 para US$ 8,25 o preço da hora de trabalho.
Mesmo fora desse epicentro do desemprego, o estouro da "bolha" imobiliária se traduziu em milhões de demissões em centenas de cidades.
Em San Diego, onde o desemprego é menor do que a média estadual, o setor imobiliário residencial permanece "estancado", segundo a agente Claudine Scott, da Home Realty. O que a preocupa agora é uma nova onda de calotes no setor comercial, também em baixa.
Um dos alijados desse setor é o ex-microempresário da construção Raymond Barron. Há três semanas, depois de muito penar, passou a trabalhar em uma concessionária de veículos em San Diego.
Sua prioridade agora é pagar o aluguel e não ser despejado da casa que divide com outros três companheiros. Nos dias anteriores à visita da reportagem, Barron não havia conseguido vender nenhum automóvel.


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