São Paulo, quarta-feira, 30 de outubro de 2002

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OPINIÃO ECONÔMICA

Lula, reformas e liberdade

PAULO RABELLO DE CASTRO

O presidente Fernando Henrique Cardoso -"o presidente-moeda", como carinhosamente o apelidamos, ainda em 1994- tinha uma espécie de pacto com a população brasileira, desde que esta o elegeu pela primeira vez: consertar a bagunça inflacionária e constituir no Brasil um padrão de moeda realmente digno de merecer confiança. Creio ter sido essa a cola que grudou a opinião pública ao presidente que agora sai de cena. O presidente FHC jamais desviou-se do rumo de proteger e fortalecer o real, a nova moeda brasileira.
Seus principais equívocos (excesso de endividamento, tardia atenção às exportações, anemia de crescimento) foram justificados pela absoluta fidelidade do presidente ao objeto de seu pacto com o povo: moeda estável, inflação baixa e controlada. Embora machucada por crises sucessivas (Ásia, Rússia, Argentina, energia, confiança mundial), a moeda brasileira está aí, como um legado efetivo, pelo qual precisamos lutar e aperfeiçoar. Mas agora o público virou essa página da história.
O pacto implícito na eleição de Luiz Inácio Lula da Silva à Presidência da República transcende à defesa da moeda. Esta, presume-se. O compromisso que Lula pactuou com a sociedade é aquele que faltou para completar o sucesso da era FHC: crescimento. Compromisso com o crescimento exigirá um novo Lula, um novo PT, uma nova coalizão de governo, uma nova mentalidade e uma até aqui desconhecida "autopoiese". Esse palavrão, tomado emprestado à moderna biologia (cf Maturana), significa o atributo da criação ("poiesis" = poesia, criação), aquela que vem de dentro de cada ser vivo. O país, como um ser coletivo, vai ter que se mostrar capaz de reproduzir melhor seu próprio código genético, tirar lá de dentro de suas próprias entranhas uma capacidade de criar e de fazer que não está inscrita nas formulações econômicas neoliberais do período do Plano Real (se é que esse pejorativo horroroso "neoliberal" cabe para definir o espírito de imitação e repetição de fórmulas prontas com que nos brindou a sabedoria convencional dos formadores de slogans econômicos no mercado).
Na semana retrasada, ao tomar a palavra para lançar a Fundação Internacional para a Liberdade (FIL), em Madri, o escritor peruano e proto-Nobel de Literatura, Mario Vargas Llosa, lembrava em seu discurso de posse como presidente da nova instituição que a América Latina clama por uma abordagem mais ampla do que aquela propagada no âmbito das chamadas reformas econômicas. "A sociedade -lembrava ele, empolgado- não se contenta apenas com propostas de reformas econômicas viáveis. Ela quer enxergar, por trás dos pacotes e programas, quem faz, por que e por quem se promete alcançar as mudanças sociais." Vargas Llosa lamentava as reformas de Fujimori no seu próprio país, o Peru. "Se for para fazer as reformas, sem ética, sem compromisso com a decência e sem foco nas efetivas aflições sociais, então melhor não fazer." E completava, apontando o compromisso básico e essencial da FIL -a nova fundação: o engajamento dos liberais reformistas na política é fundamental, principalmente para a defesa intransigente e inabalável da democracia, como regime de organização política de qualquer sociedade, em qualquer circunstância e lugar.
O casamento da ética na administração pública com a democracia é o pilar da nova organização social, pressuposto do crescimento sustentado, que Lula se comprometeu a atingir em sua gestão. Esse casamento representa o terreno de plantio da liberdade, pois tampouco vicejará o aperfeiçoamento político da democracia sem a defesa das liberdades econômicas de empreender, de investir e acumular, de contratar e de trabalhar. Subitamente, vemos com satisfação o Lula presidente bastante à vontade com os conceitos de liberdade e democracia, peças de suporte ao seu programa de reformas rumo ao crescimento. Só o tempo determinará o alcance e a profundidade desse compromisso político histórico, essa reviravolta na dialética do Partido dos Trabalhadores.
O tempo desgastará as energias iniciais e o capital político de partida, e as circunstâncias testarão sua nova convicção reformista e libertária. O compromisso com o crescimento dele exigirá, sobretudo, capacidade de conviver com a solidão das decisões difíceis e a persistência no caminho previamente traçado. Bússola e vontade serão os instrumentos da caminhada, além de um cantil para molhar os lábios ressecados da farta exposição ao sol causticante de toda sorte de pressões de interesses.
O compromisso com o crescimento será o mais difícil desafio pondo à prova um presidente civil desde JK. Tornar-se-á viável à medida que o novo presidente recusar imitações. Nem todos os caminhos levam ao êxito. São poucas as trilhas até o alto da montanha, e há mais embusteiros do que guias confiáveis até lá. Haverá enigmas para decifrar e charadas a resolver. Haverá um relógio do tempo cujos ponteiros se aceleram à medida que o jogador for errando o jogo. Por tudo isso, como alertava o presidente da nova Fundação Internacional para a Liberdade, o tema da economia é essencial e, ao mesmo tempo, apenas um pormenor. O líder deve seguir fiel a seu compromisso de liberdade e de crescimento. Que o presidente eleito comece seu jogo! E que Deus o ilumine.


Paulo Rabello de Castro, 53, doutor em economia pela Universidade de Chicago (EUA), é vice-presidente do Instituto Atlântico (RJ). Escreve às quartas-feiras, a cada 15 dias, nesta coluna.

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