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OPINIÃO ECONÔMICA
O Mistério da simplicidade
RUBENS RICUPERO
"Morreu como tinha vivido: em prece, no meio
da igreja, como um pobre sem defesa." Na igreja da Reconciliação,
cintilante das velas de 2.500 jovens, entoava-se o salmo "Demos
graças ao Senhor", antes da leitura do evangelho das bem-aventuranças. Eram 20h30, 16 de agosto
de 2005. Ninguém notou quando
a mulher com o nome de Luminata cortou a garganta do monge de
90 anos, imerso na oração.
Assim morreu um santo do nosso tempo, frei Roger Schultz, filho
de pastor suíço, ele mesmo, até o
fim, pastor calvinista membro da
Companhia de Pastores de Genebra. Em 1940, em plena guerra,
havia aberto, perto das ruínas da
abadia de Cluny (França), uma
casa de refúgio para todos os perseguidos, que teve de abandonar,
dois anos depois, sob as ameaças
da Gestapo. Findo o conflito, retomou a casa de Taizé, onde resolveu fundar comunidade de monges, reatando a tradição interrompida pela Reforma Protestante.
Houve e há outras experiências
de monges protestantes. A originalidade de Taizé é seu caráter não-exclusivista e ecumênico. Desde o
início, a intenção foi levar uma vida em comum na qual "todos os
dias se concretizaria uma reconciliação entre os cristãos". Não se
quis criar igreja alternativa. Recusando todo proselitismo, frei Roger
encorajava cada um a voltar à casa paterna, a não renegar as raízes. Era infenso a toda preocupação de catalogação confessional.
Queria unir, não separar, segundo
o desejo de Jesus: que sejamos um
como o Verbo e o Pai são um.
Isso não o impediu de ser inovador. Na liturgia, por exemplo, na
qual ofereceu a cada tradição espiritual o que lhe faltava. A católicos
e ortodoxos, o abandono da rigidez e do formalismo, o sentir-se à
vontade na igreja, descalços, sentados no chão. A protestantes um
tanto cerebrais, a beleza emotiva
dos ícones iluminados, o contato
físico da fronte com a madeira áspera da cruz, onde se vem à noite
para aliviar os fardos e as dores.
A irradiação de Taizé foi imensa. São hoje uma centena de monges de 26 nacionalidades, luteranos, calvinistas, anglicanos, evangélicos, com uma maioria de católicos. O sucessor, escolhido por frei
Roger como novo prior, é frei Aloísio, um católico alemão. Há pequenas fraternidades no Brasil,
em Senegal, em Bangladesh.
Aos poucos espalhou-se a notícia, a boa nova de que algo notável estava em vias de nascer. Os jovens começaram a acorrer, assustando, a princípio, os monges. Como Jesus, esses logo sentiram piedade daquele rebanho sem pastor.
Viram que não podiam despedi-los sem dar-lhes o alimento espiritual que buscavam. Frei Roger
tem a idéia de convocar um concílio de jovens; em 1974, são 40 mil
os que vêm a Taizé. Interrogado
sobre o que mais impressionava
nos jovens, responde: "Essa insegurança, essa falta de confiança,
que me parece universal e que, para alguns, é sem saída".
O que lhes oferece em seus livros
e pregações é a alegria, a meditação, a paz da oração e da vida interior, o amor como princípio e
fim. E, acima de tudo, a simplicidade. Um de seus textos começa:
"No Evangelho, uma das primeiras palavras do Cristo é "Felizes os
corações simples". Sim, feliz aquele
que avança em direção à simplicidade, a do coração e a da vida".
É o mistério ou paradoxo de frei
Roger. Num momento de complexidade atordoante, a simplicidade
lhe dá a chave dos corações; em
meio à divisão e ao conflito, ele
propõe a união e a paz. Pastor
protestante, foi amigo e confidente
de três papas: João 23, Paulo 6º,
João Paulo 2º. Madre Teresa de
Calcutá, num impulso, entrega-lhe uma órfã de cinco meses, dizendo-lhe: "Leve-a daqui, pois, do
contrário, ela morrerá". Também
num impulso, ele toma o bebê,
adota-o e embala-o nos joelhos
durante um mês até salvá-lo. Hoje
é psicóloga e mãe de família.
Frei Roger teve a simplicidade
de Gandhi e João 23. Como o primeiro, como Martin Luther King,
não escapou ao sopro de loucura e
violência do nosso tempo. Uma
das últimas imagens que deixou
foi sua figura frágil, na cadeira de
rodas, recebendo a comunhão do
então cardeal Ratzinger no funeral de João Paulo 2º. A cena causou espanto e ainda gera polêmica. Será demais sonhar que Bento
16, o mesmo que lhe deu a comunhão, o proclame um dia o primeiro santo ecumênico?
Rubens Ricupero, 68, diretor da Faculdade de Economia da Faap e do Instituto Fernand Braudel de São Paulo, foi secretário-geral da Unctad e ministro da Fazenda (governo Itamar Franco). Escreve quinzenalmente, aos domingos, nesta coluna.
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