São Paulo, domingo, 30 de dezembro de 2001

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LIÇÕES CONTEMPORÂNEAS

A vitória dos dinossauros

MARIA DA CONCEIÇÃO TAVARES

Os gigantes da velha economia norte-americana -os dinossauros acusados de serem "rígidos" e de usarem estratégias ultrapassadas- levaram a melhor sobre o "capital intelectual" das grandes empresas da nova economia na crise que começou antes de 11 de setembro.
O conglomerado Exxon-Mobil, o maior grupo mundial de petróleo integrado verticalmente, continua sólido enquanto a "flexível" e ágil Enron foi para o espaço em 2001. Seus ativos viraram pó. Isso levará prejuízo a vários "mercados emergentes", entre os quais o brasileiro, além de causar problemas à administração Bush.
A velha GM continua a maior produtora de automóveis e vai engolindo parte do mercado das empresas européias e asiáticas mais inovadoras. A GM, como a maioria dos grandes grupos norte-americanos originários dos setores automobilístico e elétrico, expande-se também nas áreas de tecnologia sensível. Os nomes dos grandes bancos norte-americanos com presença global também continuam os mesmos. Depois do processo de fusões e concentrações, permitidas pela nova lei bancária, voltaram a ser dominantes, passadas as ameaças sofridas pela crise do começo dos 80.
Trata-se de grandes grupos que se constituíram, no início do século 20, apoiados na construção de um mercado interno colossal, a partir do qual se expandiram pelo mundo durante quase todo o século, construindo as bases de sustentação geoeconômica da hegemonia norte-americana no pós-guerra. Em situações de crise (como a de 30 e a de agora), sempre é possível ao governo americano (republicano ou democrata) apoiá-los e reestruturar as suas dívidas, enquanto raramente pode salvar os "aventureiros", mesmo quando eles sejam influentes na política por suas redes de conexões.
O poder dos velhos dinossauros voltou a ficar evidente no final da década de 90, depois de um processo de megafusões e concentração de empresas e bancos, que teve entre os seus protagonistas de sucesso alguns dos gigantes que se consolidaram em 1902 -ano que é um marco na centralização do capital monopolista norte-americano de porte internacional. Já o endividamento colossal das empresas "modernas" e "competitivas" da nova economia, provocado pelo superinvestimento na década de 90, sem patrimônio sólido para aguentar o tranco da alavancagem, levou-as a uma posição financeira frágil e a uma possível derrota ante os dinossauros da indústria e do capital financeiro norte-americanos.
As empresas de telecomunicações estão entre as mais atingidas pela crise (ver "Carta Capital" nš 169). A desregulamentação e o superinvestimento levaram a uma rivalidade acirrada dentro e fora dos EUA que ainda não está resolvida. A World Com, com suas pretensões à nova globalização nos "mercados emergentes" que a tornou controladora da MCI (cuja filial no Brasil é a Embratel), dá cambalhotas para resolver a situação da sua filial e a sua própria, pois precisa reestruturar as dívidas que comprometem o seu patrimônio líquido.
Na América Latina, as novas filiais globais que comandaram as privatizações têm relações de endividamento pesadas sobretudo com bancos europeus de menor peso internacional e arriscaram-se demais no mercado de capitais fluido e sem regulação. A menos que venham a ser resgatadas pelos grandes grupos financeiros tradicionais, que venham a encarregar-se da reestruturação das suas dívidas, correm sérios riscos de sucumbir à atual crise mundial e levar de roldão a situação financeira externa e interna de vários países da periferia.
Os países hegemônicos ao longo da história sempre se afirmaram pela supremacia das armas e do dinheiro, mas tentaram, em geral sem sucesso prolongado, enquadrar o mundo de cuja "Pax" tinham sido os fiadores, impondo-lhe uma estrutura de direito, privado e público, com pretensões universais. A tentativa mais abrangente foi a executada pelos EUA no pós-Segunda Guerra Mundial. Começou em Bretton Woods e foi-se estendendo por meio de "consensos" sucessivos, cada vez mais duros, que ditam as regras para os outros países (sobretudo os periféricos) e são permissivos e protecionistas para com os interesses do grande capital e da superpotência. Em geral as grandes crises do sistema capitalista internacional levam a rupturas de contratos e a quebras financeiras de Estados e empresas que obrigam a mudar as "regras" por algum tipo de pacto entre os governos dos países centrais. Antes, porém, o país hegemônico tende a endurecê-las sobretudo para os países com menor importância geopolítica e geoeconômica. O exemplo recente da agonia da Argentina e o de outros países latino-americanos, para não falar da África, são reveladores.
A recente versão do "fast track" para implantar a Alca e a legislação antidemocrática a ser aplicada a "estrangeiros" depois do ataque terrorista de 11 de setembro, recém-aprovada pelo Congresso dos EUA, são exemplos extremos de conduta unilateral que não respeitam nenhuma noção de direito internacional. Trata-se, portanto, do comportamento de um império, um dinossauro da política internacional, que se sente ameaçado, e não de um país que exerce a hegemonia por regras negociadas.
Na atual conjuntura internacional, a conquista da "hegemonia moral" no sentido gramsciano parece ser a única tentativa política de "resposta global" para os povos oprimidos e para as classes subordinadas. Daí a importância que assume o Fórum Social Mundial, a ser realizado em Porto Alegre no final de janeiro de 2002.


Maria da Conceição Tavares, 70, economista, é professora emérita da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), professora associada da Universidade de Campinas (Unicamp) e ex-deputada federal (PT-RJ).

Internet:
www.abordo.com.br/mctavares

E-mail -
mctavares@cdsid.com.br



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