São Paulo, domingo, 31 de janeiro de 1999

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VISÃO DE FORA
O Brasil deixa para trás as ilusões tropicais

RUDI DORNBUSCH
O Brasil se encontra em queda livre financeira. Numa sucessão rápida, passou de uma minidesvalorização que não deu certo (como no México, em 1994) para uma banda cambial estreita que desabou em um dia e dali para uma megadesvalorização movida pelo mercado. Os responsáveis por sua política econômica se encontram em estado de choque diante do que está acontecendo nos mercados e ainda não conseguiram promover mudanças fundamentais em seu regime que possam justificar a retomada da confiança no país e em suas finanças.
É verdade que o Congresso começou a aprovar as leis que, no ano passado, poderiam haver bastado, mas a aprovação se dá tarde demais. Eles estão olhando para o passado, na tentativa de defender um histórico de decoração de interiores disfarçada de avanços reais.
Mas a prosperidade não se mede pela movimentação da Bolsa, pelas privatizações ou pelo montante de dinheiro tomado de empréstimo, e sim pelo produto econômico "per capita" -se subiu ou não- e pelos investimentos no futuro -se têm sido altos ou não. Não chega a surpreender que, após duas décadas de experimentos feitos com capital especulativo, a resposta a essas duas perguntas seja "não".
O país voltou toda sua atenção à defesa de sua moeda sobrevalorizada e perdeu de vista o problema mais fundamental do crescimento e da estabilidade. Contraiu uma dívida muito grande e que não possui meios de pagar, dobrou e triplicou as apostas e agora foi expulso do cassino. É hora de empreender reformas drásticas.
Como tantas outras tentativas de estabilização ao longo de sua própria história e, também, em toda a América Latina, também o Plano Real acaba de desmoronar. Durou muito mais tempo do que os outros e aparentava estar dando muito mais certo, mas isso era porque uma quantidade gigantesca de dinheiro havia sido tomada de empréstimo.
Além disso, a receita das privatizações foi colocada à disposição para financiar uma aparência de estabilidade e normalidade na qual todos queriam acreditar, cada um por suas próprias razões: o presidente, para conseguir se reeleger, os brasileiros, porque a dor da normalidade, num país pobre com desigualdades tremendas, é dura demais. E os investidores ficaram felizes em embarcar no barco da fantasia porque representava bons negócios.
Sim, concordamos, o Brasil é diferente. Sim, como sempre, até segunda ordem; enquanto isso, vamos negando a realidade. A crise asiática teve pouco a ver com o colapso brasileiro. Este é de fabricação doméstica, assim como foi a crise mexicana no momento em que se deu, com uma taxa cambial sobrevalorizada e um déficit orçamentário imenso, enormes dívidas externas de curto prazo e uma explosiva dívida interna indexada.
O Brasil se considerava merecedor de crédito por haver interrompido a inflação, mas não fez nada para que essa situação se conservasse. A primeira fase de uma estabilização sem austeridade fiscal e com uma moeda forte é sempre de euforia -a inflação é baixa, o dinheiro do exterior flui para o país, os mercados acionários sobem, o consumo aumenta, o crescimento, finalmente, volta a acontecer.
A segunda fase, quando as dúvidas começam a se instalar e os investidores passam a cobrar tudo o que lhes é devido, sem dó, significa altas taxas de juro, a redução dos vencimentos das dívidas e a indexação da dívida. Mais uma porção de dinheiro, por favor! Só até a eleição. O FMI dará a garantia. E depois, inevitavelmente, se passa para o terceiro capítulo, em que os investidores querem cair fora enquanto ainda há algum dinheiro a deixar.
É nesse momento que o castelo de cartas desaba. Os juros não podem permanecer altos para sempre, e isso significa que a moeda não vai se segurar, o que, por sua vez, significa que você precisa sair dali rapidamente. Como acontece com todas as bolhas.
O teorema básico das crises monetárias é o seguinte: elas demoram muito mais a chegar do que se imaginaria e, quando chegam, acontecem em muito menos tempo do que se poderia prever. Além disso há outro teorema: de cada três crises previstas pelos economistas, duas nunca chegam a se concretizar e a terceira é muito pior do que se havia previsto. O Brasil confirma essas verdades. O que é estarrecedor é o seguinte: depois do México, depois da Ásia, depois da Rússia, o que exatamente os brasileiros estavam pensando? É fácil compreender a atitude dos investidores: eles sabem que existe um prazo curto durante o qual poderão usar as reservas e que o dinheiro do FMI vai lhes permitir pular fora no momento certo, saltando do barco sem molhar os pés. Mas o que dizer daqueles que arcam com as despesas, em especial o governo -será que ainda acreditam em Papai Noel, ainda acreditam naquela história de que o Brasil é grande demais para que se possa permitir que afunde? E o FMI e o Tesouro norte-americano, será que já não deveriam estar preparados, não deveriam adotar uma postura mais cética quando vêem apenas promessas e absolutamente nada de concreto sendo feito? A resposta de que o governo brasileiro não estava disposto a cooperar soa absurda, provavelmente é verdadeira e significa apenas que o FMI se transformou num concessor incondicional de empréstimos de último recurso, promovendo a instabilidade mais do que as finanças corretas e justas. O diretor do FMI, Michael Camdessus, virou o maior crupiê do mundo. Mensagem da Terra a Camdessus: se manca, cara!
Existem três passos que precisam ser dados para criar uma economia estável e capaz de acabar dando certo. O primeiro e mais imediato é que o país precisa adotar o "currency board". A inflação e a taxa de câmbio são um problema perene dos últimos 20 anos, responsável pelo fato de o crescimento "per capita" ter sido zero durante todo esse período. Chega! Livrem-se do Banco Central, como fez a Argentina. É um passo difícil para um país grande, altivo e voltado para ele mesmo. Mas não reflete apenas a adaptação a um mercado moderno de capital impiedoso e extremamente volátil. É uma questão de bom senso, apenas, depois do histórico econômico pavoroso de duas décadas. O argumento tradicionalmente empregado para justificar a existência de um banco central é feito de três partes: orgulho nacional, capacidade de criar dinheiro e flexibilidade decorrente da possibilidade de ajustar a taxa cambial, em lugar de submeter-se a ajustes domésticos dolorosos.
Basta um segundo de reflexão para perceber que nenhum desses pontos se aplica a situações tropicais em que todos eles se tornaram desvantagens. Orgulhar-se da quinta moeda adotada em poucos anos é piada, imprimir muito dinheiro é um risco e ajustar a taxa de câmbio seria ótimo, mas começar por sobrevalorizá-la e depois vê-la desmoronar não é bem o caminho indicado. Os "currency boards" em Hong Kong e na Argentina não são panacéias, mas constituem um pilar extraordinário de estabilidade em meio à turbulência regional. São o caminho certo a seguir.
O segundo passo, infeliz e inevitável, é a reestruturação da dívida interna. Seus vencimentos são curtíssimos, ela é indexada ao dólar ou às taxas do mercado e, consequentemente, cresce em ritmo explosivo. Os juros altos pagos sobre uma dívida que cresce como bola de neve constituem grande parte do problema fiscal. Estender os vencimentos, a taxas pré-fixadas, moderadas, porém indexadas, não é punitivo e pode resolver o problema que, se isso não for feito, corre o risco de acabar se transformando em simplesmente mais uma moratória, como fez o Brasil há poucos anos. O argumento de que ninguém mais vai emprestar dinheiro ao Brasil é absurdo; os concessores de empréstimos retornarão num instante, como sempre fizeram, assim que a última dívida for paga ou cancelada.
O terceiro passo consiste em fazer um pagamento inicial sob a forma de reforma estrutural e conquistar credibilidade por merecimento. O Brasil deveria colocar as privatizações que ainda restam por fazer sobre a mesa, imediatamente, e realizá-las, sem corrupção. Tal iniciativa geraria confiança e ajudaria a reduzir o custo do capital, à medida que o Brasil retornasse para o mercado mundial de capitais. Tirar o governo da história seria meio caminho andado para as reformas. A outra metade seria o governo parar de traçar regras de maneira arbitrária e interferir na vida econômica. Um século de governo de grande presença, poderoso e instável gerou uma vida econômica na qual as empresas buscam favores e privilégios em troca do apoio prestado a governos mal dirigidos. Os horizontes são curtos, os investimentos -contrariamente à especulação e à venda de ativos-, baixos, e o crescimento, idem. O Brasil se encontra numa encruzilhada. Seu dinheiro acabou e não há mais jeitinho que resolva seus problemas.


Tradução de Clara Allain

QUEM É
RUDIGER DORNBUSCH
alemão naturalizado norte-americano, economista, 53 anos, é doutor pela Universidade de Chicago e professor do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT), nos EUA.






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