São Paulo, sexta-feira, 31 de março de 2000


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OPINIÃO ECONÔMICA

O rico barnabé cearense

MAILSON DA NÓBREGA

Os engenheiros da Boeing em Seattle, EUA, ganham em média US$ 63 mil por ano, segundo a revista "The Economist" da semana passada. É um rendimento anual de mais ou menos R$ 109 mil.
Esses profissionais, que projetam e fabricam os jatos da empresa, estão em greve contra novas demissões. Seus empregos estão ameaçados pela competição feroz da Airbus, o consórcio aeronáutico europeu que anda nos calcanhares da Boeing.
Trata-se de pessoal de altíssima qualificação, que precisa se manter atualizado para preservar sua capacidade de competir pelos bons empregos da companhia.
Enquanto isso há um funcionário público cearense aposentado ganhando cerca de R$ 550 mil por ano (13 salários de R$ 42.154,93). Seu rendimento anual, equivalente a mais de US$ 300 mil, é cinco vezes maior do que o dos engenheiros da Boeing.
Nos países ricos, as aposentadorias costumam atingir dois terços do salário da ativa. Por esse parâmetro, o barnabé cearense deveria ganhar US$ 450 mil por ano na ativa, mais do que os honorários do presidente dos EUA.
Nesses países, os aposentados contribuem para sua aposentadoria. O barnabé cearense, com absoluta certeza, jamais contribuiu para receber tanto.
A remuneração básica do barnabé é de R$ 88,79 por mês. Ele conseguiu, assim, multiplicar quase 500 vezes o seu salário. Trabalhando duro? Gerando melhores serviços para os contribuintes? Não. Aproveitando-se de leis irresponsáveis.
Esse é um dos mais bem-acabados retratos da nossa tragédia fiscal. Presidentes, governadores, prefeitos e parlamentares utilizaram seus poderes para beneficiar minorias ou para conceder benefícios insuportáveis, ainda que para um público maior.
No primeiro caso, o das minorias, criou-se uma casta de privilegiados, cujo mérito é saber pressionar os poderosos ou descobrir brechas por meio das quais aumentam seus salários, sem correspondência em maior dedicação ou produtividade.
No outro caso, o melhor exemplo são as aposentadorias incompatíveis com a geração de recursos da Previdência, processo que beirou o desatino com a Constituição de 1988. O preço tem sido o crescente déficit previdenciário e seus efeitos inibidores sobre o crescimento da economia.
O festival de vantagens imorais a funcionários públicos não tem ideologia nem é característico do período militar ou da democracia. É consequência pura e simples do descaso com o dinheiro público e um acinte ao contribuinte e ao cidadão.
Casos como o do barnabé cearense são muitos no próprio Estado. Em uma atitude inédita e corajosa, o governo divulgou pela Internet (www.ceara.gov.br) uma lista com 614 funcionários que ganham mais do que o governador (R$ 7.800 por mês). O primeiro da lista é o barnabé em apreço.
O drama cearense vem de longe. Desde a década de 50, várias leis autorizaram a incorporação de vantagens ao salário básico. Sobre o novo valor incidiram outros benefícios em cascata. Salários baixos viraram maná dos céus para uns poucos.
Em outros Estados, o processo ganhou um neologismo: "apostilagem". Se o funcionário era diretor da Saúde, incorporava a remuneração ao sair. Se depois ia para o Trânsito, repetia o processo. Se assumisse 20 cargos, acumulava 20 vantagens.
No Ceará, mais de 20 leis estaduais permitiram acumular também vantagens de cargos nas prefeituras e nas empresas estatais. Por uma lei de 1986, bastavam dez meses no cargo. De tão malfalada, ela é popularmente conhecida como "Lei Geni".
Interpretações camaradas e em causa própria permitem ao Ministério Público, que deveria zelar pelos interesses da sociedade, ser o grande beneficiário dessas leis. Na lista dos 614 sortudos, a maioria expressiva pertence à Procuradoria Geral da Justiça.
O governo do Ceará tem lutado para vencer poderosos grupos de interesse incrustados no serviço público estadual. Infelizmente para os cearenses, muitos desses supersalários são legais e por isso terminam sendo confirmados na Justiça.
O perverso processo construído por leis irresponsáveis dos Estados (e de alguns municípios) resulta em concentração de renda e na subtração de recursos que deveriam ser postos a serviço do bem-estar da maioria, e não para satisfazer minorias.
A luta do governo do Ceará merece o apoio de todos nós, ainda que sejam pequenas as chances de inverter o mal. Nossa cultura jurídica permite garantir privilégios como se fossem direitos adquiridos.
A denúncia é o instrumento para coibir a repetição desses desvios. Ajuda a reforçar o nosso arsenal de fatores: uma sociedade vigilante, uma imprensa livre e investigativa e a futura Lei de Responsabilidade Fiscal.


Mailson da Nóbrega, 57, ex-ministro da Fazenda (governo José Sarney), sócio da Tendências Consultoria Integrada, escreve às sextas-feiras nesta coluna.
E-mail: mailson@palavra.inf.br


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