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OPINIÃO ECONÔMICA
O rico barnabé cearense
MAILSON DA NÓBREGA
Os engenheiros da Boeing em
Seattle, EUA, ganham em média
US$ 63 mil por ano, segundo a
revista "The Economist" da semana passada. É um rendimento anual de mais ou menos R$
109 mil.
Esses profissionais, que projetam e fabricam os jatos da empresa, estão em greve contra novas demissões. Seus empregos estão ameaçados pela competição
feroz da Airbus, o consórcio aeronáutico europeu que anda nos
calcanhares da Boeing.
Trata-se de pessoal de altíssima qualificação, que precisa se
manter atualizado para preservar sua capacidade de competir
pelos bons empregos da companhia.
Enquanto isso há um funcionário público cearense aposentado ganhando cerca de R$ 550
mil por ano (13 salários de R$
42.154,93). Seu rendimento
anual, equivalente a mais de
US$ 300 mil, é cinco vezes maior
do que o dos engenheiros da
Boeing.
Nos países ricos, as aposentadorias costumam atingir dois
terços do salário da ativa. Por
esse parâmetro, o barnabé cearense deveria ganhar US$ 450
mil por ano na ativa, mais do
que os honorários do presidente
dos EUA.
Nesses países, os aposentados
contribuem para sua aposentadoria. O barnabé cearense, com
absoluta certeza, jamais contribuiu para receber tanto.
A remuneração básica do barnabé é de R$ 88,79 por mês. Ele
conseguiu, assim, multiplicar
quase 500 vezes o seu salário.
Trabalhando duro? Gerando
melhores serviços para os contribuintes? Não. Aproveitando-se
de leis irresponsáveis.
Esse é um dos mais bem-acabados retratos da nossa tragédia
fiscal. Presidentes, governadores, prefeitos e parlamentares
utilizaram seus poderes para beneficiar minorias ou para conceder benefícios insuportáveis,
ainda que para um público
maior.
No primeiro caso, o das minorias, criou-se uma casta de privilegiados, cujo mérito é saber
pressionar os poderosos ou descobrir brechas por meio das
quais aumentam seus salários,
sem correspondência em maior
dedicação ou produtividade.
No outro caso, o melhor exemplo são as aposentadorias incompatíveis com a geração de
recursos da Previdência, processo que beirou o desatino com a
Constituição de 1988. O preço
tem sido o crescente déficit previdenciário e seus efeitos inibidores sobre o crescimento da
economia.
O festival de vantagens imorais a funcionários públicos não
tem ideologia nem é característico do período militar ou da democracia. É consequência pura
e simples do descaso com o dinheiro público e um acinte ao
contribuinte e ao cidadão.
Casos como o do barnabé cearense são muitos no próprio Estado. Em uma atitude inédita e
corajosa, o governo divulgou pela Internet (www.ceara.gov.br)
uma lista com 614 funcionários
que ganham mais do que o governador (R$ 7.800 por mês). O
primeiro da lista é o barnabé em
apreço.
O drama cearense vem de longe. Desde a década de 50, várias
leis autorizaram a incorporação
de vantagens ao salário básico.
Sobre o novo valor incidiram
outros benefícios em cascata. Salários baixos viraram maná dos
céus para uns poucos.
Em outros Estados, o processo
ganhou um neologismo: "apostilagem". Se o funcionário era
diretor da Saúde, incorporava a
remuneração ao sair. Se depois
ia para o Trânsito, repetia o processo. Se assumisse 20 cargos,
acumulava 20 vantagens.
No Ceará, mais de 20 leis estaduais permitiram acumular
também vantagens de cargos
nas prefeituras e nas empresas
estatais. Por uma lei de 1986,
bastavam dez meses no cargo.
De tão malfalada, ela é popularmente conhecida como "Lei Geni".
Interpretações camaradas e
em causa própria permitem ao
Ministério Público, que deveria
zelar pelos interesses da sociedade, ser o grande beneficiário dessas leis. Na lista dos 614 sortudos, a maioria expressiva pertence à Procuradoria Geral da
Justiça.
O governo do Ceará tem lutado para vencer poderosos grupos
de interesse incrustados no serviço público estadual. Infelizmente para os cearenses, muitos
desses supersalários são legais e
por isso terminam sendo confirmados na Justiça.
O perverso processo construído
por leis irresponsáveis dos Estados (e de alguns municípios) resulta em concentração de renda
e na subtração de recursos que
deveriam ser postos a serviço do
bem-estar da maioria, e não para satisfazer minorias.
A luta do governo do Ceará
merece o apoio de todos nós,
ainda que sejam pequenas as
chances de inverter o mal. Nossa
cultura jurídica permite garantir privilégios como se fossem direitos adquiridos.
A denúncia é o instrumento
para coibir a repetição desses
desvios. Ajuda a reforçar o nosso
arsenal de fatores: uma sociedade vigilante, uma imprensa livre
e investigativa e a futura Lei de
Responsabilidade Fiscal.
Mailson da Nóbrega, 57, ex-ministro da
Fazenda (governo José Sarney), sócio da
Tendências Consultoria Integrada, escreve
às sextas-feiras nesta coluna.
E-mail: mailson@palavra.inf.br
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