São Paulo, sexta-feira, 31 de maio de 2002

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OPINIÃO ECONÔMICA

Perdas e danos dos cartéis

CLAUDIO CONSIDERA

A sociedade brasileira habituou-se, no período mais recente, a ler, ver e ouvir notícias sobre a descoberta de cartéis, principalmente de postos de gasolina. Notícia recente referiu-se à inédita condenação pelo Cade (Conselho Administrativo de Defesa Econômica) do cartel de postos de combustíveis de Florianópolis.
O tipo de cartel mais comum é aquele formado por dois ou mais vendedores de bens ou serviços, supostamente concorrentes entre si, que, secretamente, se comunicam com o objetivo de fixar preços idênticos e elevados para o mesmo produto, evitando, consequentemente, a competição entre eles.
Entretanto poucos sabem a razão de essa conduta ser considerada uma infração à ordem econômica, imputável administrativamente (lei 8.884/94), com multas para empresas e indivíduos. Em alguns países, como o próprio Brasil, é também um crime imputável juridicamente (lei 8.137/90), com penas de prisão para os indivíduos envolvidos. Para as empresas, pode haver ainda processos cíveis por perdas e danos, movidos pelos consumidores.
Para entendermos isso, teremos que recorrer a alguns conceitos em que se baseia uma economia de mercado. Os brasileiros não estão muito acostumados a esse conceito. Afinal, desde sempre nos habituamos à intervenção do Estado em todos os aspectos da vida econômica, quer produzindo bens e serviços por meio de suas empresas, quer impondo regras restritivas ao livre comércio, quer, ainda, fixando e controlando preços e salários do setor privado. Esse ambiente começou a mudar a partir de 1989: a abertura comercial com a redução das tarifas de importação, a privatização e a liberação dos preços culminam com o novo ordenamento econômico do Plano Real.
Com a introdução das concepções de equilíbrio fiscal e monetário, foi possível garantir a manutenção da estabilidade econômica, implantada a partir de 1994. Nessa mesma época, o Brasil trocou o controle de preços pela lei da oferta e da demanda, ao adotar a lei 8.884, passando a contar com um moderno aparato de defesa e promoção da concorrência. Por essa lei, o livre jogo das forças de mercado, em um ambiente concorrencial, deve ser suficiente para garantir preços estáveis e justos.
Uma economia de livre mercado supõe que cada produtor procure maximizar seu lucro, dada uma certa tecnologia, tanto quanto um indivíduo busca maximizar seu bem-estar, sujeito a sua limitação orçamentária. Se houver concorrência, esse encontro de interesses levará a uma alocação ótima dos recursos produtivos, produzindo quantidades e qualidades de produtos de acordo com a capacidade do país, tanto quanto levará ao maior bem-estar do seu povo. Concorrência existe desde que nenhum agente econômico seja capaz de impor preços nesse mercado, sendo preço o resultado do encontro dos desejos dos produtores concorrentes em ofertar quantidades e qualidades de produtos e dos desejos dos consumidores em adquiri-los. A concorrência será tanto maior quanto mais livre for o comércio entre os países e quanto menor for a interferência do Estado no processo econômico.
A existência de cartéis, portanto, fere mortalmente o mercado: eles causam dano ao consumidor e têm efeito pernicioso sobre a eficiência econômica. Para os que participam de cartéis, seus inimigos são os consumidores; seus companheiros nessa ação, em vez de concorrerem entre si, tornam-se aliados em burlar a economia de mercado. Um cartel bem-sucedido eleva seus preços acima do nível de concorrência e reduz a produção. Adicionalmente, o cartel protege seus autores da exposição às forças de mercado, reduzindo a pressão sobre eles para controlar custos e inovar. Todos esses efeitos afetam adversamente a eficiência da economia de mercado e o bem-estar.
O Comitê de Concorrência da OCDE (Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico) realizou uma enquete entre seus membros sobre casos de cartéis investigados entre 1996 e 2000, numa tentativa de conhecer melhor o dano deles decorrentes. Os países que responderam reportaram 119 casos -em muitos dos quais foi impossível medir os danos. Foi possível, entretanto, verificar que os 16 casos de cartel mais importantes envolveram um montante de comércio de US$ 55 bilhões em todo o mundo. Concluiu-se, também, que a margem de lucro dos cartéis varia significativamente e em alguns deles pode chegar a 50%, tornando claro que a magnitude do dano dos cartéis é de muitos bilhões de dólares anuais.
Um dos países mais bem-sucedidos em caçar cartéis são os EUA. Seus casos mais importantes referem-se a lisinas, ácido cítrico, vitaminas e eletrodos de grafite, cujo comércio afetado foi superior a US$ 45 bilhões e o dano estimado foi de cerca de US$ 1,3 bilhão. As sanções aplicadas foram multas de quase US$ 2 bilhões e prisão para 13 executivos das companhias envolvidas.
No Brasil, não temos ainda sido muito efetivos na identificação e na punição de cartéis. Condenamos até hoje dois cartéis: o do aço e o de postos de combustíveis de Florianópolis. O caso do cartel de aço ilustra como o controle de preços no Brasil foi pernicioso e como ainda continua produzindo seus efeitos deletérios. As três empresas envolvidas pediram audiência ao secretário da Seae e comunicaram que na semana seguinte elevariam os preços de seus produtos igualmente, como estavam habituadas a fazer antes da liberação de preços. Foram, na ocasião, advertidas da infração que estariam cometendo, caso assim procedessem, e, a despeito disso, fizeram o anunciado.
Um outro caso na mesma linha ocorreu em 6 de fevereiro de 1999, quando os principais jornais do Rio de Janeiro anunciaram na sua primeira página que o seu sindicato havia deliberado por um aumento de 20% no preço dos jornais a partir daquela data.
Esses são dois exemplos de como a antiga sistemática de controle de preços adotada pelo governo brasileiro, de sentar-se à mesa com produtores para determinar preços em conjunto, provavelmente continua prevalecendo, mesmo anos depois do fim do controle de preços no Brasil. Esses dois casos, todavia, são exemplos do que poderíamos chamar de cartéis tolos: por hábitos antigos, anunciaram à autoridade ou publicamente que estavam cometendo a infração.
O mesmo não ocorre, entretanto, em outros casos de cartel investigados pelo SBDC (Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência), como o caso de postos de combustíveis de Florianópolis, já julgado, ou os de Salvador e Brasília, a serem julgados, ou ainda o complô de gerentes de vendas de algumas empresas farmacêuticas contra os remédios genéricos. Seus autores, reunidos em segredo, sabiam estar cometendo uma infração à ordem econômica.
Ameaças de morte contra não-seguidores do cartel são frequentes. Não podemos nos esquecer do assassinato do procurador que investigava em Belo Horizonte o cartel de falsificação de gasolina, que nada mais é do que uma forma disfarçada de aumento de preços. Muitos casos semelhantes a esse podem ocorrer em associações e sindicatos de produtores. Reúnem-se, começam a conversar sobre amenidades, e logo a conversa deriva para os preços de seus produtos, numa verdadeira conspiração contra o povo.
O combate a essa infração administrativa e criminal à ordem econômica só será mais efetivo no Brasil se os órgãos de defesa da concorrência forem dotados de maior capacidade de investigação. Nos países em que cartel é crime, o aparato policial e de procuradores trabalha com os órgãos de defesa da concorrência, ampliando as possibilidades de investigação. No período recente, tivemos algumas experiências que demonstram como esse trabalho em conjunto pode frutificar. Foram, no entanto, colaborações eventuais, que, para ser mais eficazes em outros casos, têm que se tornar institucionalizadas.


Claudio Considera é secretário de Acompanhamento Econômico do Ministério da Fazenda.
Hoje, excepcionalmente, a coluna de Luiz Carlos Mendonça de Barros não é publicada.


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