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São Paulo, quinta-feira, 31 de julho de 2003

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OPINIÃO ECONÔMICA

Sangria desatada

PAULO NOGUEIRA BATISTA JR.

A história da medicina tem passagens medonhas. O ministro Palocci certamente sabe que a medicina primitiva recorria a métodos como a sangria, por exemplo. Era tenebroso. Cada sangria podia significar a extração de meio litro de sangue. Às vezes, o paciente era submetido a três ou quatro sangrias em um único dia. As mortes causadas por esse tratamento eram numerosas.
Nos séculos recentes, a medicina evoluiu muito. A economia, nem tanto. A equipe do dr. Palocci, por exemplo, aplica obstinadamente o equivalente econômico da sangria. E são cada vez mais nítidos os sintomas de que o tratamento está debilitando seriamente o paciente. Se ficarmos na dependência da ortodoxia primitiva da Fazenda e do Banco Central, corremos sério risco de mergulhar em grave recessão.
Praticamente todos os indicadores da economia brasileira sugerem que está havendo "overkill" fiscal e monetário. Não passa uma semana sem que apareçam novos sinais de que a política econômica é excessivamente restritiva.
Formou-se um consenso de que o paciente já sangrou demais. Todos estão de acordo em relaxar a política monetária. Cresce também a avaliação de que as metas fiscais do acordo com o FMI precisam ser redefinidas para acomodar alguma ampliação do investimento público. As divergências residem agora basicamente na velocidade que se deve imprimir ao relaxamento monetário e fiscal.
Não basta, porém, aliviar a dose. O mais importante é identificar as restrições ao crescimento da economia e enfrentar sem demora os problemas de fundo. Num ambiente de escassez de recursos, é fundamental estabelecer a hierarquia correta de prioridades e lançar o foco sobre as questões principais.
Nesse aspecto, a área econômica do governo vem falhando desde o início. Apostou as suas fichas na recuperação de uma bisonha "agenda perdida" e na busca do "ajuste fiscal permanente". Pouco ou nada fez, volto a dizer, para enfrentar aquele que tem sido o obstáculo primordial ao crescimento vigoroso da economia nacional: a crônica vulnerabilidade das contas externas.
Quem examinar a trajetória econômica do Brasil nos últimos dez anos não deixará de registrar a impressionante repetição de crises nas contas externas. Todas as tentativas de retomada da produção e do emprego foram abortadas por estrangulamentos de balanço de pagamentos. De fins de 1998 em diante, o Brasil virou cliente cativo do FMI. Em menos de quatro anos, assinou três acordos com essa instituição. Tornou-se rotina buscar empréstimos em Washington para financiar desequilíbrios nas contas internacionais do país.
O que aconteceu de positivo na área das contas externas no passado recente -o rápido ajustamento da conta corrente do balanço de pagamentos desde meados de 2002- não é mérito do governo brasileiro, pois reflete basicamente o colapso cambial e a estagnação da economia. A política econômica atual ameaça até comprometer esse resultado positivo ao permitir uma exagerada revalorização do real.
O problema da vulnerabilidade externa não se reduz à conta corrente do balanço de pagamentos. Como nada foi feito para disciplinar os fluxos financeiros, a economia brasileira continua excessivamente vulnerável pelo lado da conta de capitais do balanço de pagamentos. Além disso, as reservas internacionais do país estão muito abaixo do que poderia ser considerado um nível razoavelmente seguro. Excluídos os empréstimos do FMI, as reservas próprias do Brasil vêm oscilando em torno de US$ 16 bilhões a US$ 18 bilhões.
Não por acaso, estamos dedicados, mais uma vez, à melancólica discussão sobre se convém ou não fazer novo acordo com o FMI no final do ano.


Paulo Nogueira Batista Jr., 48, economista, pesquisador visitante do Instituto de Estudos Avançados da USP e professor da FGV-EAESP, escreve às quintas-feiras nesta coluna. É autor do livro "A Economia como Ela É..." (Boitempo Editorial, 3ª edição, 2002).

E-mail - pnbjr@attglobal.net


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