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São Paulo, domingo, 31 de agosto de 2003

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LIÇÕES CONTEMPORÂNEAS

Abra as asas sobre nós

LUIZ GONZAGA BELLUZZO

Hoje começo por apresentar Doug Henwood, autor do excelente livro "Wall Street", uma ácida avaliação do funcionamento dos "mercados" na era da desregulamentação.
Henwood estudou literatura, mas iniciou sua vida profissional numa corretora de Nova York e transformou-se num especialista nas intrincadas questões da finança. Os que buscam uma exposição clara e competente das teorias financeiras -de Marx a Stiglitz, passando naturalmente por Keynes-, não jogarão fora o seu tempo lendo "Wall Street". Hoje, Henwood é responsável pela publicação da newsletter "Left Business Observer". O título, um primor de auto-ironia, demonstra claramente as intenções do editor: além de refinadas análises do capitalismo contemporâneo, Henwood ataca impiedosamente a esquerda humanista e choramingas de Manhattan e adjacências.
Em sua última edição, a "Left Business Observer" traz uma entrevista com o filósofo Slavoj Zizek. Entre tantas avaliações sobre o comportamento da opinião pública americana a respeito da Guerra do Iraque -antes, durante e depois-, a de Zizek parece a mais original e certeira.
As pesquisas de opinião revelaram: apenas 17% dos americanos disseram que não havia iraquianos nos atentados de 11 de setembro de 2001. Uma alta porcentagem respondeu que o Iraque havia utilizado armas químicas e biológicas contra as forças da assim chamada coalizão. E por aí vai.
Zizek diz que a esquerda americana interpreta de forma equivocada esse grotesco estado de desinformação. Não se trata apenas do resultado óbvio da produção de falsidades pela mídia, como pretendem alguns. Há, na verdade, uma recusa ativa em reconhecer que funciona mais ou menos assim: "Não me venha com conversa mole. Eu pago meus impostos e não me interessam as sujeiras que o governo possa fazer".
Zizek afirma que não está advogando uma visão conservadora do tipo "as pessoas comuns preferem a ignorância e é preciso uma elite iluminada para guiá-las". Está, sim, perplexo com a transformação ideológica em curso na vida política americana. Para ele, o sistema ideológico dominante criou enormes expectativas sobre o funcionamento da democracia. Paradoxalmente, as expectativas democráticas ameaçam a função da ideologia como forma de controle social.
A formação do desejo de não conhecer opera, assim, como uma violação necessária das condições que seriam compatíveis com as promessas de auto-esclarecimento e emancipação do indivíduo na sociedade americana. É necessário que essa violação seja suave, gradual, quase imperceptível.
A estratégia de Bush e da nova direita fundamentalista, segundo Zizek, é bloquear as possibilidades libertadoras da sociedade americana. "Não estou dizendo que Bush vai usar o pretexto da ameaça terrorista par instaurar uma meia ditadura militar. Não! Isso será feito de forma imperceptível, mediante regras não escritas. Alguém poderia imaginar a tortura como um tópico legítimo três ou quatro anos atrás? Minha maior preocupação é essa revolução suave, essa imperceptível mudança nas normas sociais, nas regras não escritas sobre o que é aceitável ou não."
O consenso dominante trata de explicar que, se não for assim, sua vida pode piorar ainda mais. A formação desse consenso é, em si mesma, um método eficaz de bloquear o imaginário social, numa comprovação dolorosa de que as criaturas da história humana -da ação coletiva- adquirem dinâmicas próprias e passam a constranger a liberdade de homens e mulheres.
Trata-se da emergência, na esfera jurídico-política, da exceção permanente, na consolidação da lei do mais forte, para desgosto dos que se imaginam descendentes do Iluminismo e de seu programa de garantias da liberdade e da igualdade.
A boa sociedade deve tornar livres os seus integrantes -não apenas livres de um ponto de vista negativo, no sentido de não serem coagidos a fazer o que não fariam por espontânea vontade, mas positivamente livres, no sentido de serem capazes de fazer algo da própria liberdade. Isso significa primordialmente o poder de influenciar as condições da própria existência, dar um significado ao bem comum e fazer as instituições sociais funcionarem adequadamente.


Luiz Gonzaga Belluzzo, 60, é professor titular de Economia da Unicamp (Universidade de Campinas). Foi chefe da Secretaria Especial de Assuntos Econômicos do Ministério da Fazenda (governo Sarney) e secretário de Ciência e Tecnologia do Estado de São Paulo (governo Quércia).


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