São Paulo, Domingo, 31 de Outubro de 1999
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OPINIÃO ECONÔMICA
Uma vitória contra o imperialismo

RUBENS RICUPERO
A intervenção do Barão do Rio Branco "no caso do Bolivian Syndicate marcou significativa vitória da diplomacia brasileira contra a pior forma de imperialismo anglo-americano que então se esboçou na América do Sul". Não, quem escreveu isso não foi um nostálgico do vocabulário marxista nem algum neonacionalista de plantão mas -pasmem!- ninguém menos do que Gilberto Freyre em "Ordem e Progresso".
A referência ao imperialismo de cem anos atrás convida à releitura da questão do Acre à luz dos problemas contemporâneos. Pois a semelhança entre o momento que hoje atravessamos com aquele de nossos avós não está somente na passagem de um século para outro. Vivia-se então etapa da expansão do capitalismo global que antecipa em mais de um ponto as características dos tempos que correm. Sobretudo na energia selvagem, destrutiva e criadora, do espírito empresarial, o "animal spirits" de que falava Adam Smith e na ausência quase total de barreiras ao comércio, às finanças e aos investimentos internacionais.
A "Belle Epoque" de 1870 a 1913 foi a idade de ouro do "laissez faire", da mínima interferência do governo na economia. É a "era do Império", de Eric Hobsbawm, do domínio da Grã-Bretanha, como a nossa é a idade do predomínio dos Estados Unidos, o "século americano". Grandes companhias mercantis como a East India Company ou a Royal African Company anunciavam as multinacionais de agora. A mais infame foi a Companhia do Congo, propriedade pessoal do rei Leopoldo II, da Bélgica, que se estima haver causado a morte de 10 milhões de africanos, com requintes de perversidade que inspiraram "Heart of Darkness" a Joseph Conrad.
Foi nessa atmosfera de cobiça e violência, que o representante boliviano em Londres, Félix Aramayo, assina com a firma Cary Whitridge, de Wall Street, contrato para arrendar o Acre por 30 anos, renováveis por igual período, a um consórcio de investidores, ingleses e americanos em maioria, que vai se chamar o Bolivian Syndicate.
Tratava-se de tentativa desesperada de alguns bolivianos para salvar o que eles denominavam de "Território de Colonias", isto é, o Acre, onde cerca de 60 mil brasileiros haviam sido atraídos pelo "boom" da borracha. Lino Romero, o governador, se queixava a La Paz de que os bolivianos se sentiam ali tão "estrangeiros como se estivessem nas mais remotas colônias da Ásia: os homens e a natureza nos são totalmente adversos".
Nestes nossos tempos em que o BNDES utiliza recursos do Fundo do Amparo ao Trabalhador para ajudar estrangeiros a adquirir companhias construídas com o dinheiro e os esforços de brasileiros, sabe lá que obsceno entusiasmo não despertaria nos "babacas" da privatização (creio que foi a expressão imortalizada no grampo) contrato como esse, modelar na privatização das funções do Estado! Com efeito, a companhia assumia o governo civil e a administração, com autoridade absoluta e exclusiva para arrecadar rendas e impostos "e geralmente para fazer, administrar, executar (...) todos os negócios, atos, funções, obrigações, direitos, poderes e privilégios de qualquer espécie, que ora competem ou venham a competir ao governo". Este transferia terras, edifícios, propriedades, à companhia, que pagaria os salários de juízes e funcionários, além de poder manter força armada, barcos de guerra, forças de polícia! Como se vê, o sonho thatcheriano.
Não partilhava desse sonho o Barão do Rio Branco, servidor do Estado a vida toda, para o qual o contrato era "uma monstruosidade em Direito, importando alienação e soberania feita em benefício de sociedade estrangeira". E concluía: "é concessão para terras de África, indigna do nosso continente". Passando das palavras aos atos, confirmou a proibição da navegação do Amazonas rumo ao Acre, feita pelo governo anterior de Campos Salles em circular do Ministério da Fazenda. Não se impressionou com os protestos diplomáticos da Grã-Bretanha, França, Alemanha e dos Estados Unidos pois sabia, como observou o historiador americano Bradford Burns, que "a proibição era a arma mais forte do Brasil contra o Sindicato uma vez que sem acesso ao Acre -e o Amazonas era a única via prática- a concessão não tinha valor".
O fechamento do Amazonas provocou, como era de se esperar, violenta campanha da imprensa internacional, que denunciava, como se costuma fazer agora, o deplorável efeito negativo que a medida teria sobre o ânimo dos investidores.
O Barão era, contudo, um moderado, com agudo senso das realidades do poder. Não desejava alienar o governo dos EUA e empurrá-lo para posição de apoio político aos investidores, muitos dos quais influentes na vida pública (um deles era W.E. Roosevelt, primo do presidente americano). Sabia que, meses antes, o ministro dos Estados Unidos no Rio de Janeiro tinha comunicado ao governo que os direitos e interesses de cidadãos americanos teriam de ser "protegidos, quaisquer que fossem e em qualquer lugar". Esse mesmo ministro havia informado a Washington que tinha usado "linguagem firme" com o ministro das Relações Exteriores (Olinto Magalhães, o antecessor de Rio Branco), assegurando-o de que os interesses americanos no Acre seriam "vigilantemente acompanhados e resolutamente protegidos por nós".
Depois da firmeza do fechamento, chegara, portanto, a hora da conciliação e do compromisso. Não obstante o erro tivesse sido cometido pelo governo boliviano, o Brasil dispôs-se a pagar ao Syndicate soma de US$ 550 mil (equivalentes, em valores atuais, a US$ 9.526.000), em compensação pela desistência a direitos que não tinham sido exercidos devido ao bloqueio do rio.
Em todo o episódio, a atitude do governo americano foi moderada e correta. Outro, porém, poderia ter sido o desenlace, não fora a capacidade que teve o Barão de dosar, na medida exata, o uso do poder ao alcance do Brasil, ainda que limitado, com a disposição de transigir e negociar com dignidade. O risco de confronto, no qual jogavam os investidores, não era desprezível. Pouco antes, os conflitos sangrentos na China (guerra dos Boxers) e na África do Sul (guerra dos Boers) haviam mostrado a que extremos podia conduzir a cobiça do imperialismo.
Pouco depois, menos de dois anos, o mesmo presidente americano, Teddy Roosevelt, iria "tomar" o Panamá. Felizmente, as coisas se passaram de outro jeito. O resto é história. Uma nota final, curiosa, ao pé da página dessa mesma história. Durante a tensão que acompanhou a questão acreana, várias unidades militares foram enviadas à região. Dentre elas, seguiu do Rio Grande do Sul para Corumbá o 25º Batalhão de Infantaria. Nele, um ex-cadete que daria o que falar nos futuros anais do nacionalismo, o então obscuro sargento Getúlio Vargas...




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