São Paulo, quinta-feira, 02 de dezembro de 2004
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Saúde

Como as pessoas enfrentam o momento em que precisam fazer um teste de Aids

Eu não tenho medo

ANA PAULA DE OLIVEIRA
DA REPORTAGEM LOCAL

A cada três brasileiros com HIV -são, segundo estimativas, 600 mil-, dois não sabem que têm o vírus da Aids. A principal razão desse dado alarmante não repousa no fato de a doença poder ser assintomática, mas no medo de se submeter ao exame conclusivo. E não é pelo temor da agulha ou de doar sangue. No imaginário popular, a palavra "positivo" -ou "reagente"- encerra um veredicto que sentencia à morte o portador do vírus, mesmo que hoje a Aids seja tida como doença crônica, e não mais letal, como era há uma década.
"Ainda é uma doença assustadora, porém, com tratamento, a vida é prolongada. É uma bobagem não fazer o exame por medo da realidade", explica Vicente Amato Neto, médico infectologista e professor da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP).
E qual a vantagem de saber a sentença antes? A pergunta, que parece óbvia, é uma das justificativas pessoais para o adiamento ou até mesmo a negação de se submeter ao exame. Assim como outras doenças, o diagnóstico precoce permite aplicar o tratamento antes mesmo que o sistema imunológico esteja comprometido. "Quando já está doente, a pessoa vai ter de tomar mais medicamentos: além daqueles para controlar o próprio HIV, também terá de usar remédios para as doenças oportunistas", afirma Ricardo Palacios, infectologista da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).
Se a resistência em não fazer o exame se dá pelo medo de agulhas, o teste é simples e não dói. É coletada uma pequena amostra sangüínea, assim como exames laboratoriais de rotina.
Se a desculpa for pela falta de dinheiro, existem CTAs (Centros de Testagem e Aconselhamento) espalhados por todo o país, que realizam
testes gratuitos e oferecem acompanhamento médico e psicológico antes da coleta e ao entregar o resultado.
Aliás, ter o resultado interpretado por um profissional de saúde -ou saber o que significa a diferença entre reagente e não-reagente- pode ser muito útil, além de poupar desespero desnecessário.
"Tive uma crise de choro no meio do laboratório", confessa o comissário de bordo Pedro Henrique Esposti, 24, que não conseguiu identificar se o resultado era positivo ou negativo. "Chamaram um psicólogo do laboratório para me consolar e também um médico, que me explicou que os números lá escritos significavam que eu não tinha o vírus, mas, mesmo assim, não acreditei por um bom tempo."
Para burlar o medo, também é bom ter uma companhia -amigo, parceiro, familiar- na hora de retirar o exame. "Essa pessoa pode dar o apoio e suporte necessário", diz Suely Guimarães, 50, do Instituto de Psicologia da Universidade de Brasília (UnB), já que, seja qual for o resultado, os segundos que antecedem a descoberta são críticos e delicados.
Preocupação comum, a vergonha também é uma das barreiras que impedem a pessoa de procurar um laboratório. "Tem gente que até dá o nome de outra pessoa", diz Amato Neto.
Entretanto, o médico adianta que todos os exames são sigilosos. É possível até fazer o teste sem a indicação de um médico e ainda sem revelar o nome.
"A maioria das pessoas que fazem o exame retira o resultado, que é entregue apenas para a própria pessoa ou a alguém por ela autorizado. A atendente não sabe o resultado, que vem em envelope lacrado. Por isso, não existe discriminação entre positivo e negativo. Mas, se a pessoa desejar, damos orientação médica para interpretá-lo", diz José Roberto Lino Filho, 41, diretor de operações de atendimento do laboratório Fleury, que realiza cerca de 65 mil exames por ano.

"FIQUE SABENDO"
Motivo óbvio da relevância do exame é frear a transmissão do vírus, afinal, quem não sabe que o possui é um transmissor involuntário, como diz Daniel Souza, 39, filho do sociólogo Herbert de Souza, o Betinho, que morreu em 1997, aos 61 anos, em decorrência da Aids. À frente da campanha "Fique Sabendo", cujas camisetas desde o ano passado vestem famosos, Daniel pretende conscientizar as pessoas da importância de fazer o teste.
Se pensar em si mesmo talvez não seja motivo suficiente para perder o medo do exame, o professor do Departamento de Psiquiatria da Unifesp Jair Mari adianta que uma saída poderia ser pensar altruisticamente, isto é, "em defesa da própria civilização".

IMPOSIÇÃO
Apesar de ser imprescindível o teste de HIV, o exame que detecta o vírus da Aids não pode ser exigido. Ninguém é obrigado a fazê-lo, mesmo que uma empresa, um plano de saúde ou até mesmo um médico o requeira. "Porém é comum isso acontecer, principalmente em contratação de funcionários. Essa exigência é ilegal", afirma Amato Neto.
Mesmo não sendo obrigatório, o teste é recomendado na gravidez, pois, se a mãe estiver infectada, medicamentos ministrados durante o parto podem evitar o contágio do vírus no bebê.
Soraia Albuquerque Sene, 29, casada e mãe de um filho de cinco meses, sabe bem o que é passar por isso, pois, quando pensou em engravidar, foi logo solicitando um exame de HIV ao obstetra. Contudo, logo que o namoro com o atual marido passou a ficar sério, ambos decidiram passar pelo crivo. "Como sabia que já tinha 'vacilado' algumas vezes, fiquei com medo e enrolei para procurar o laboratório", relata, dizendo que, assim que a coragem veio, foi procurar um posto municipal. "Mas o resultado só sairia em 30 dias. Não agüentei esperar e fui, no dia seguinte, a um laboratório particular. Queria resolver tudo isso logo."
No dia da retirada do teste, Sene foi sozinha ao local, pegou o envelope como quem pega uma sentença e caminhou para longe de lá. Trêmula, investiu na coragem e encarou o veredicto: "Estava tão nervosa que não entendi se negativo era que tinha o vírus. Tive de ligar para uma amiga que trabalha em hospital para ela me ajudar. Foi um sufoco."


Onde encontrar
Testes gratuitos - Centros de Testagem e Aconselhamento
www.aids.gov.br/fiquesabendo/cta.asp ou 0/xx/61/448-8094
Informações gerais - www.aids.gov.br ou 0800-611997
Associação Brasileira Interdisciplinar de Aids
www.abiaids.org.br ou 0/xx/21/2223-1040
Assista à nova campanha "Fique Sabendo" - www.xbrasil.net
ABC da Aids - www.abcdaids.com.br
Programa das Nações Unidas sobre Aids - www.unaids.org



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