São Paulo, quinta-feira, 03 de maio de 2001
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s.o.s família

Do quarto de casa para a rua

Rosely Sayão

Uma amiga estava outro dia abastecendo o carro ao mesmo tempo em que, na bomba próxima, estava uma outra mulher fazendo o mesmo. E, enquanto esperava, fumava tranquilamente. Essa amiga pediu, então, que o frentista avisasse à motorista que ela estava fumando em local proibido, o que ela considerava perigoso. Assim que a motorista recebeu o recado, abriu a janela do carro e lançou frases agressivas e desaforadas em direção à minha amiga. Destaco uma delas, publicável: "Você é uma frustrada, não tem mais o que fazer?".
Essa cena me faz lembrar de uma outra, da qual fui testemunha. Estava passeando pelas ruas do bairro em que moro, e uma moça passeava com seu cão. Em dado momento, ele parou e, bem no meio da calçada, fez cocô. Sua dona não parecia, de modo algum, preparada para limpar a calçada, e um homem, que observava a cena de seu carro parado no sinal vermelho, perguntou à moça como ela iria resolver aquela situação. A resposta que o homem ouviu e eu também: "Meta-se com sua vida, seu f.d.p.".
Minha amiga tinha, sim, mais o que fazer. E, naquele momento, teve uma atitude de cuidado com o espaço público, compartilhado por todos e, portanto, de responsabilidade de todos. Mas foi interpretada como se tivesse feito uma interpelação pessoal. O mesmo ocorreu com o motorista que ouviu a expressão desaforada: ele estava, sim, metendo-se com a vida dele quando se preocupou com a sujeira do cão que iria ficar na calçada. E tinha o direito -e o dever- de fazer o que fez.
A resposta das duas pessoas nos leva a pensar na confusão que muitos fazem entre espaço público e espaço privado, e isso começa, certamente, em casa, no convívio familiar.
Quem tem filhos em casa sabe bem a bagunça que é preciso administrar: roupa para todos os lados, brinquedo, comida, material escolar etc. Mas, pouco a pouco, a criança tem condição de começar a aprender a respeitar determinados espaços, sem que isso cerceie seu comportamento de explorar, conhecer, brincar. Com adolescentes é a mesma coisa: a desorganização deles é quase regra, do ponto de vista do adulto, mas o espaço compartilhado pode e deve ser respeitado de acordo com os costumes da família. E o jovem, se é educado e respeitado em seu espaço, logo encontra um modo equilibrado de conviver no espaço de uso comum.
É assim que os filhos aprendem que há espaços em que ele pode se comportar como quiser e deixar as coisas como gosta, mesmo se isso não é aprovado pelos outros, pois lá ele tem privacidade, lá ele tem liberdade quase absoluta.
É o caso do quarto de um adolescente, por exemplo, e da casa dos adultos. Quem é que não se sente confortável quando está em casa, longe da observação dos outros?
É assim que os filhos aprendem que, quando estão no espaço compartilhado com outras pessoas, precisam observar as regras do convívio em grupo às quais estão submetidos, pois são protegidos por elas também. Regras que as duas pessoas dos casos citados transgrediram, provavelmente achando que era uma questão absolutamente pessoal, e, assim, esqueceram-se totalmente de que sua conduta provocava consequência em muitas outras pessoas que usam o mesmo espaço.
A mulher que fumava não estava na própria casa, muito menos a dona do cão. Aliás, duvido que ela permitisse que seu cão fizesse o mesmo no meio da sala da casa dela.
À primeira vista, essa parece apenas uma questão de bons modos e de etiqueta no comportamento social. Pois é bom saber que isso pode ter um alcance muito maior. Aprender a se comportar no espaço público supõe também aprender a construir e a saber preservar o espaço privado. E isso é fundamental para a liberdade, para a autonomia e para a saúde mental de todos.


ROSELY SAYÃO é psicóloga, consultora em educação e autora de "Sexo É Sexo" (ed. Companhia das Letras); e-mail: roselys@uol.com.br




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