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s.o.s família
Do quarto de casa para a rua
Rosely Sayão
Uma amiga estava outro dia abastecendo o
carro ao mesmo tempo em que, na bomba próxima, estava uma outra mulher fazendo
o mesmo. E, enquanto esperava, fumava tranquilamente. Essa amiga pediu, então, que o
frentista avisasse à motorista que ela estava fumando em local proibido, o que ela considerava perigoso. Assim que a motorista recebeu o
recado, abriu a janela do carro e lançou frases
agressivas e desaforadas em direção à minha
amiga. Destaco uma delas, publicável: "Você é
uma frustrada, não tem mais o que fazer?".
Essa cena me faz lembrar de uma outra, da
qual fui testemunha. Estava passeando pelas
ruas do bairro em que moro, e uma moça passeava com seu cão. Em dado momento, ele parou e, bem no meio da calçada, fez cocô. Sua
dona não parecia, de modo algum, preparada
para limpar a calçada, e um homem, que observava a cena de seu carro parado no sinal
vermelho, perguntou à moça como ela iria resolver aquela situação. A resposta que o homem ouviu e eu também: "Meta-se com sua
vida, seu f.d.p.".
Minha amiga tinha, sim, mais o que fazer. E,
naquele momento, teve uma atitude de cuidado com o espaço público, compartilhado por
todos e, portanto, de responsabilidade de todos. Mas foi interpretada como se tivesse feito
uma interpelação pessoal. O mesmo ocorreu
com o motorista que ouviu a expressão desaforada: ele estava, sim, metendo-se com a vida
dele quando se preocupou com a sujeira do
cão que iria ficar na calçada. E tinha o direito
-e o dever- de fazer o que fez.
A resposta das duas pessoas nos leva a pensar na confusão que muitos fazem entre espaço público e espaço privado, e isso começa,
certamente, em casa, no convívio familiar.
Quem tem filhos em casa sabe bem a bagunça que é preciso administrar: roupa para todos
os lados, brinquedo, comida, material escolar
etc. Mas, pouco a pouco, a criança tem condição de começar a aprender a respeitar determinados espaços, sem que isso cerceie seu
comportamento de explorar, conhecer, brincar. Com adolescentes é a mesma coisa: a desorganização deles é quase regra, do ponto de
vista do adulto, mas o espaço compartilhado
pode e deve ser respeitado de acordo com os
costumes da família. E o jovem, se é educado e
respeitado em seu espaço, logo encontra um
modo equilibrado de conviver no espaço de
uso comum.
É assim que os filhos aprendem que há espaços em que ele pode se comportar como quiser e deixar as coisas como gosta, mesmo se isso não é aprovado pelos outros, pois lá ele tem
privacidade, lá ele tem liberdade quase absoluta.
É o caso do quarto de um adolescente, por
exemplo, e da casa dos adultos. Quem é que
não se sente confortável quando está em casa,
longe da observação dos outros?
É assim que os filhos aprendem que, quando
estão no espaço compartilhado com outras
pessoas, precisam observar as regras do convívio em grupo às quais estão submetidos, pois
são protegidos por elas também. Regras que
as duas pessoas dos casos citados transgrediram, provavelmente achando que era uma
questão absolutamente pessoal, e, assim, esqueceram-se totalmente de que sua conduta
provocava consequência em muitas outras
pessoas que usam o mesmo espaço.
A mulher que fumava não estava na própria
casa, muito menos a dona do cão. Aliás, duvido que ela permitisse que seu cão fizesse o
mesmo no meio da sala da casa dela.
À primeira vista, essa parece apenas uma
questão de bons modos e de etiqueta no comportamento social. Pois é bom saber que isso
pode ter um alcance muito maior. Aprender a
se comportar no espaço público supõe também aprender a construir e a saber preservar o
espaço privado. E isso é fundamental para a liberdade, para a autonomia e para a saúde
mental de todos.
ROSELY SAYÃO é psicóloga, consultora em educação e
autora de "Sexo É Sexo" (ed. Companhia das Letras); e-mail: roselys@uol.com.br
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