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[+] corrida - Rodolfo Lucena
Lá, amanhã
Já tinha feito mais da
metade do meu treino, correndo pela
avenida Sumaré,
quando vi o cartazete mal
ajambrado que dizia: "O
melhor dia é hoje".
E seguia, em garranchos
escritos num pedaço de papelão, restos de alguma caixa qualquer: "O melhor lugar é aqui, o melhor momento é agora".
Cheguei mesmo a dar
uma parada na minha corrida, prestando mais atenção
no cartaz, que enfeitava
uma carroça de papeleiro. E
pensei que o "hoje" talvez
não fosse o melhor dia nem
sequer para o dono da carroça, que já estava abandonada ali pelo menos desde a
última vez que eu correra
por aquela avenida, na zona
oeste de São Paulo.
Deu até uma certa raiva:
quem disse que o melhor
momento é agora, que o melhor lugar é aqui? Se o sujeito acaba de torcer o pé, está
com uma gripe danada ou
leva um humilhante tombo
enquanto faz seu treininho
descompromissado, achará
que está no seu máximo?
E outra coisa: quem disse
que é preciso estar sempre
no máximo, no melhor momento, no melhor lugar, no
melhor dia? Na corrida, como na vida, a gente está
sempre indo, e a chegada fica para mais tarde.
Cada treino que fazemos
pode ser bom ou ruim ou
mais ou menos, não precisa
ser o melhor treino de todos
os tempos.
Muitas vezes, é até bem
chinfrim, decepcionante.
Mas, de algum jeito, ele nos
dá alento ou desafio para
que, no dia seguinte, estejamos de volta ao asfalto, ao
parque, fazendo mais um
tanto, um pouco de cada
vez. Sem precisar fazer o
melhor ou acreditar que
aquilo que está sendo corrido é o máximo.
Ao contrário: na maioria
das vezes, o corredor deve
se cuidar para não dar o máximo, pois pode acabar se
machucando. Tem de combinar treinos fortes e fracos.
E precisa aprender, também, que não vai bater seu
recorde a cada nova corrida.
Algumas serão boas; outras,
uma porcaria.
Esse tipo de aforismo tem
muito a ver com uma certa
religiosidade crédula, passiva. É cantado em prosa e
verso, como se devêssemos
sempre estar felizes e satisfeitos, contentes com o que
temos ou o que somos.
Os corredores sabemos
que não é assim. Estamos
sempre indóceis e insatisfeitos, achando que poderíamos ter feito melhor,
corrido mais rápido, com
mais elegância. Da próxima
vez, vamos ultrapassar
aquele rival ou atingir um
objetivo qualquer -que,
uma vez atingido, será passado, esquecido em nome
de outra meta.
Coisa de maluco, de desequilibrado? Correr é estar
sempre em desequilíbrio,
com apenas um pé no chão
de cada vez, que também
nunca fica estável. Ou está
chegando ou está impulsionando, fazendo com que o
movimento prossiga, com
que o momento mude.
Pois mudar é o nome do
jogo nesta vida corrida. Mudar, crescer, vencer, perder,
cair e levantar de novo, em
constante busca.
Para o corredor, o melhor
lugar é lá e o melhor momento, daqui a pouco.
RODOLFO LUCENA, 52, é editor de Informática da Folha , ultramaratonista e autor
de "Maratonando, Desafios e Descobertas
nos Cinco Continentes" (ed. Record)
rodolfolucena.folha@uol.com.br
www.folha.com.br/rodolfolucena
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