São Paulo, quinta-feira, 07 de maio de 2009
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

[+] corrida - Rodolfo Lucena

Lá, amanhã

Já tinha feito mais da metade do meu treino, correndo pela avenida Sumaré, quando vi o cartazete mal ajambrado que dizia: "O melhor dia é hoje". E seguia, em garranchos escritos num pedaço de papelão, restos de alguma caixa qualquer: "O melhor lugar é aqui, o melhor momento é agora".
Cheguei mesmo a dar uma parada na minha corrida, prestando mais atenção no cartaz, que enfeitava uma carroça de papeleiro. E pensei que o "hoje" talvez não fosse o melhor dia nem sequer para o dono da carroça, que já estava abandonada ali pelo menos desde a última vez que eu correra por aquela avenida, na zona oeste de São Paulo.
Deu até uma certa raiva: quem disse que o melhor momento é agora, que o melhor lugar é aqui? Se o sujeito acaba de torcer o pé, está com uma gripe danada ou leva um humilhante tombo enquanto faz seu treininho descompromissado, achará que está no seu máximo?
E outra coisa: quem disse que é preciso estar sempre no máximo, no melhor momento, no melhor lugar, no melhor dia? Na corrida, como na vida, a gente está sempre indo, e a chegada fica para mais tarde. Cada treino que fazemos pode ser bom ou ruim ou mais ou menos, não precisa ser o melhor treino de todos os tempos.
Muitas vezes, é até bem chinfrim, decepcionante. Mas, de algum jeito, ele nos dá alento ou desafio para que, no dia seguinte, estejamos de volta ao asfalto, ao parque, fazendo mais um tanto, um pouco de cada vez. Sem precisar fazer o melhor ou acreditar que aquilo que está sendo corrido é o máximo.
Ao contrário: na maioria das vezes, o corredor deve se cuidar para não dar o máximo, pois pode acabar se machucando. Tem de combinar treinos fortes e fracos. E precisa aprender, também, que não vai bater seu recorde a cada nova corrida. Algumas serão boas; outras, uma porcaria.
Esse tipo de aforismo tem muito a ver com uma certa religiosidade crédula, passiva. É cantado em prosa e verso, como se devêssemos sempre estar felizes e satisfeitos, contentes com o que temos ou o que somos.
Os corredores sabemos que não é assim. Estamos sempre indóceis e insatisfeitos, achando que poderíamos ter feito melhor, corrido mais rápido, com mais elegância. Da próxima vez, vamos ultrapassar aquele rival ou atingir um objetivo qualquer -que, uma vez atingido, será passado, esquecido em nome de outra meta.
Coisa de maluco, de desequilibrado? Correr é estar sempre em desequilíbrio, com apenas um pé no chão de cada vez, que também nunca fica estável. Ou está chegando ou está impulsionando, fazendo com que o movimento prossiga, com que o momento mude.
Pois mudar é o nome do jogo nesta vida corrida. Mudar, crescer, vencer, perder, cair e levantar de novo, em constante busca. Para o corredor, o melhor lugar é lá e o melhor momento, daqui a pouco.


RODOLFO LUCENA, 52, é editor de Informática da Folha , ultramaratonista e autor de "Maratonando, Desafios e Descobertas nos Cinco Continentes" (ed. Record)

rodolfolucena.folha@uol.com.br
www.folha.com.br/rodolfolucena



Texto Anterior: Inspire respire transpire: Bollywood na academia
Próximo Texto: Saúde afinada
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.