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Saúde
Saúde afinada
Hospitais e pesquisadores usam música para acelerar recuperação de pacientes cardíacos
JULLIANE SILVEIRA
DA REPORTAGEM LOCAL
A
pianista Beth Ripoli,
57, tocava uma música quando viu seu marido se aproximar. A
composição era romântica, ambos choraram, o público se
emocionou com a cena. Ele, o
empresário Luiz Carlos Franco, 56, andava com dificuldade
e arrastava o frasco de soro
-estava internado havia alguns
dias, recuperando-se de um infarto e da implantação de quatro pontes de safena. Ela tinha
resolvido tocar o piano do hospital enquanto acompanhava o
marido no pós-operatório.
"Eu precisava andar e vi que
ela estava tocando, e a música
me chamou a atenção. Imagina
ter seu tronco aberto, pararem
seu coração para operá-lo e depois ele voltar a bater. Fica-se
em um estado muito sensível,
alguns pacientes entram em
depressão. E a música exercita
sua sensibilidade do lado positivo", avalia Luiz.
Desde então, Beth apresenta
recitais no HCor (Hospital do
Coração), em São Paulo, para
pacientes e acompanhantes,
como parte de um projeto que
considera a música um dos
componentes que ajudam na
recuperação de pacientes com
problemas cardiovasculares,
principalmente em questões
emocionais.
Silvia Cury Ismael, responsável pelo serviço de psicologia do
HCor, observa em seus pacientes que ouvir música durante
uma internação ajuda a resgatar questões esquecidas do lado
de fora do hospital, o que faz
com que se sintam mais motivados a se recuperar. O ambiente, afirma Ismael, se torna
mais leve e menos depressivo.
Para a ciência, no entanto, a
música vai além: os benefícios
não são somente emocionais
mas também se refletem na redução da pressão arterial e da
frequência respiratória e na
normalização das taxas de batimentos cardíacos.
É o que mostram alguns estudos, como a revisão científica
divulgada no mês passado pela
Cochrane Collaboration (rede
global dedicada a revisão e análise de pesquisas na área da saúde). Foram avaliados 23 estudos com dados de 1.461 pacientes que se submeteram a sessões de música durante a internação após cirurgia ou infarto.
A maioria dos trabalhos comprovou que a música ajudou a
reduzir pressão sanguínea, ritmo cardíaco, frequência respiratória, ansiedade e dor nos pacientes estudados.
Os trabalhos avaliaram a
ação de diversas músicas -boa
parte com harmonias consonantes e ritmos constantes (como algumas músicas eruditas,
baladas e músicas próprias para relaxamento)- em sessões
de musicoterapia ou audições
de até 30 minutos.
"Os estudos não apontaram
por quais mecanismos a música
ajuda o sistema cardiovascular.
No entanto, sabemos que a música diminui a atividade de regiões cerebrais que afetam as
respostas emocionais e psicológicas. Isso reduz a liberação
de hormônios estressores que
podem afetar a frequência cardíaca e a pressão arterial", disse
à Folha Joke Bradt, responsável pela revisão científica e diretor-assistente do Centro de
Pesquisa em Artes e Qualidade
de Vida da Temple University
(EUA).
Experiências brasileiras
Dados preliminares de um
estudo que será publicado nos
"Arquivos Brasileiros de Cardiologia" também são promissores. A musicoterapeuta Cláudia Regina de Oliveira Zanini,
professora da Universidade Federal de Goiás, avaliou o uso da
técnica em pacientes hipertensos para sua tese de doutorado.
Zanini observou 46 pacientes da liga de hipertensão da
universidade durante três meses. Metade deles participou de
sessões de audição musical,
composição e improvisação vocal, além de exercícios de respiração e relaxamento voltados
para a música durante 30 minutos por semana. Ao final do
período, a pressão arterial desse grupo havia caído de 150
mmHg por 90 mmHg para 133
mmHg por 80 mmHg. Já o grupo controle não apresentou redução significativa.
"O tratamento da hipertensão é de longo prazo, e muitos
pacientes não aderem a ele. Entre os que têm pressão alta, somente 50% sabem disso e só
10% têm sucesso porque seguem o tratamento. Eu proponho a musicoterapia como um
tratamento não medicamentoso, que seja um coadjuvante",
afirma Zanini.
Para a cardiologista pediátrica Thamine Hatem, do Real
Hospital Português de Beneficência, em Recife, o uso da música ajuda na recuperação mais
rápida dos pacientes, pois as
reações provocadas no organismo pela música podem diminuir o uso de sedativos e remédios para a dor.
"Quanto menor o uso de
analgésicos e de sedativos, melhor. Quanto menos tempo a
criança passa na UTI, menor é
o risco de infecção", diz.
Hatem publicou, em 2006,
uma pesquisa que avaliou como reagiram 84 crianças de até
14 anos nas primeiras 24 horas
após uma cirurgia cardíaca, depois de uma sessão de música
erudita. "Dava para ver que, se
a criança estava angustiada e
chorosa, acalmava-se ao colocar o fone de ouvido; muitas
crianças dormiam durante o
processo."
As crianças ouviram "A Primavera", de Vivaldi, por meia
hora e tiveram melhora no ritmo de batimentos cardíacos,
na frequência respiratória e na
sensação de dor. "Uma frequência cardíaca muito alta aumenta a pressão e o risco de
sangramento. Já a frequência
respiratória elevada significa
desconforto ou problema pulmonar -se é controlada, mostra que era causada mais por
um desconforto", explica.
A aposentada Eunice da Silva
Ferreira, 52, também sentiu os
benefícios do uso da música
após a cirurgia para colocar
duas pontes mamárias no INC
(Instituto Nacional de Cardiologia), no Rio de Janeiro.
Foram instaladas caixas de som ao lado dos leitos, que
transmitem música erudita,
sons da natureza e canções próprias para relaxamento durante todo o dia, das 8h às 22h.
"O ambiente hospitalar é
frio, há pessoas sedadas. Eu tenho uma doença sem cura, e a
música me ajudava a me desligar um pouco da realidade. O
uso da música deu tão certo que
nós pedíamos aos funcionários
que colocassem sempre", diz
Eunice, que acompanhou a implantação das caixas de som na
UTI do instituto.
De acordo com o INC, um
ano após a instalação de caixas
de som na UTI, houve uma redução de 40% no consumo de
tranquilizantes e sedativos.
Os pacientes podem até pedir aos funcionários que desliguem o som, mas, dizem os médicos, ninguém nunca o fez.
"A UTI tem muito barulho,
luz acessa, aparelhos. O paciente está ansioso com o que vai
acontecer e isso gera um estresse grande. As diretrizes [orientações das sociedades médicas]
indicam ansiolíticos aos pacientes; muitos não conseguem
dormir à noite, a ansiedade aumenta a frequência cardíaca e a
pressão arterial", diz o cardiologista Marco Antonio de Mattos, diretor do INC.
Escolhas musicais
Na maioria dos estudos, as
músicas utilizadas têm ritmos
constantes, harmonias consonantes e são mais calmas, características que ajudam o paciente a relaxar.
"Não é qualquer música clássica que produz relaxamento. É
preciso pensar em músicas
mais calmas, com menor número de batimentos por minutos e que sejam bem harmônicas e agradáveis", aconselha o
neurocientista Felipe Viegas
Rodrigues, pesquisador do Laboratório de Neurociência e
Comportamento da USP.
No entanto, fatores culturais
e o gosto pessoal também devem ser levados em consideração na hora de utilizar a música
como componente na recuperação do paciente.
"É preciso curtir a música,
usufruir dela e de seus efeitos
benéficos", sugere o neurologista Mauro Muszkat, coordenador do In Music, grupo multidisciplinar da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo) que estuda a ação da música
no organismo.
Não é possível, no entanto,
determinar por quanto tempo
o paciente deve ouvir música e
quais seriam os tipos mais indicados. Muszkat resume: "Não
dá para dizer o tempo adequado para cada indivíduo. De maneira didática, ouvir mais músicas, com graus diferentes de
complexidade, um repertório
variado, facilita ao organismo
processar esses sons de formas
mais variadas e mais amplas,
inclusive com benefícios no sistema cardiovascular."
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