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Outras idéias
A arrumação do mundo
Dulce Critelli
Inventamos e fabricamos
objetos e instrumentos
para que eles nos ajudem
em nossas tarefas e atividades, para que diminuam o
tempo dos afazeres e mitiguem
os esforços do nosso corpo e da
nossa mente. Esperamos que
eles favoreçam esse nosso trabalho de pôr o mundo em ordem para a nossa moradia. Panelas e poltronas, TVs e automóveis, sinais de trânsito e avenidas, aquecedores e talheres,
todos têm esse mesmo fim. Inclusive os objetos estéticos e as
obras de arte, pois as coisas não
só devem ser úteis, mas também belas.
É assim que instalamos a cultura sobre a natureza e criamos
um mundo sobre a Terra, como
lembram Marx, Heidegger,
Hannah Arendt... Só arrumando o mundo como um lugar para viver é que conseguimos encontrar nele um lugar que seja
o nosso. O mundo precisa nos
dar conforto e acolhimento, ser
lugar de proteção e de repouso.
Precisa ser uma casa acolhedora e segura, para poder nos distrair e defender da indigência e
da precariedade que constituem isso que chamamos vida.
Não era, portanto, para a pista ser tão curta nem para estar
sem ranhuras. Não era para haver construções tão próximas.
Não era para o reverso estar
quebrado nem para o computador de bordo impedir que o piloto manejasse o avião segundo
as necessidades do momento.
Era para o avião nos trazer de
volta as pessoas queridas, e não
roubá-las de nós.
Foi uma perversa inversão na
ordem das coisas, que é destes
tempos, e não exclusiva desse
doloroso episódio, que nos deixou entregues aos limites e aos
comandos da máquina. E pensar que as criamos para que elas
fossem submissas ao nosso uso
e às nossas decisões.
O que deveria nos engrandecer é o que nos põe em perigo e
nos ameaça. O medo de voar
não é assunto que tem sido um
foco importante da mídia diante de tal desastre?
Cada uma das épocas históricas tem suas tragédias determinadas por alguns dos seus componentes estruturais. As tragédias contemporâneas têm a
técnica e a produção da riqueza
como o barro e a madeira de
sua armação.
Toda dor, toda angústia, toda aflição, todo medo, toda
doença... Todo amor, toda alegria, toda expectativa, toda satisfação... Todo encanto, toda
saudade, toda desilusão... Tudo atravessado por esses impulsos modernos. Não há
chances nem existência sem
eles.
No entanto, quando esses pilares falham, expõem sua impressionante fragilidade. Só
então ficamos diante daquilo
que verdadeiramente importa:
viver na companhia daqueles
que amamos.
DULCE CRITELLI, terapeuta existencial e
professora de filosofia da PUC-SP, é autora
de "Educação e Dominação Cultural" e
"Analítica de Sentido" e coordenadora do
Existentia -Centro de Orientação e Estudos da
Condição Humana
dulcecritelli@existentia.com.br
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