São Paulo, quinta-feira, 14 de julho de 2005
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Comportamento

Dúvidas sobre aplicação de remédios, análise de exames e até perguntas embaraçosas: comunicação eletrônica aproxima médicos e pacientes, mas não é regulamentada

Tratamento na rede

ANA PAULA DE OLIVEIRA
FLÁVIA MANTOVANI
DA REPORTAGEM LOCAL

Um mês e meio antes de ir para a Olimpíada de Atenas, o velejador brasileiro João Carlos Jordão, 43, passou por duas cirurgias para tratar uma hérnia de disco. Apesar de estar a milhares de quilômetros de distância, o médico que o operou, o neurocirurgião Eduardo Bueno, conseguiu fazer, pela internet, um acompanhamento da recuperação do velejador durante a competição.
Aproximadamente a cada três dias, o médico lhe escrevia perguntando o que sentia e orientando o tratamento. "Eu dizia se estava com dor e ele me falava qual era o melhor procedimento a adotar", conta Jordão, que acredita que o computador facilita o acesso ao profissional da saúde. "É mais fácil e mais rápido. Por telefone, tem que achar um horário em que as duas pessoas possam se falar. Por e-mail, eles poderão se comunicar na hora em que estiverem acessíveis", diz.
O tipo de comunicação usada por Jordão e Bueno não é útil somente em casos extremos como esse, quando os interlocutores estão em países distantes. Cada vez mais pessoas, mesmo morando na mesma cidade de seus médicos, recorrem às ferramentas da rede para obter informações sobre a forma correta de usar um remédio, um novo tratamento descrito numa reportagem e outros temas que geram dúvida, mas que não justificam uma ida ao consultório. E-mail, webcam, mensagens de celular e até o site de relacionamentos virtuais Orkut são alguns dos recursos utilizados.
O neurocirurgião Eduardo Bueno diz que usa o correio eletrônico para se comunicar com pacientes há cerca de dois anos, geralmente para acompanhar pessoas que ele opera e que moram em outras cidades. "Alguns mandam imagens de radiografias e exames pela rede. Às vezes, também ajudo colegas médicos que moram em outras cidades e vão tratar daquela pessoa", afirma.


A internet pode ajudar a tratar de temas delicados. "Muita gente não se sente à vontade para perguntar certas coisas olho no olho", diz Guimarães


Outro médico que usa a internet para acompanhar pacientes que moram fora é o ortopedista Ricon Jr., diretor do Centro Ortopédico de Ipanema. "Trabalho em dois hospitais militares que são referência na área e recebo pacientes de todo o Brasil. Alguns, quando colocam próteses, têm que ser acompanhados de seis em seis meses pelo resto da vida. A comunicação via e-mail é mais barata do que a que é feita por telefone."
O ortopedista conta que muitos pacientes já usam radiologia digital -alguns centros de diagnósticos disponibilizam os exames em CD para o paciente- ou fotografam as radiografias com câmera digital e enviam para o médico eletronicamente.
Segundo Ricon Jr., mesmo pacientes do Rio de Janeiro, onde ele atende, costumam mandar e-mails. Ele também tira algumas dúvidas de pessoas que não são seus pacientes, principalmente por meio de um site que criou há seis meses. Muitos acabam marcando uma consulta após a troca de mensagens eletrônicas.
O cirurgião plástico Jorge Psillakis também criou um site no qual responde a dúvidas sobre cirurgias e procedimentos. "Também é uma forma de conseguir novos clientes", afirma. Há seis anos, ele usava a internet como ferramenta de trabalho apenas para comunicar aos seus pacientes mudanças de endereço ou pequenas informações. Em seguida, vieram os boletins mensais com novidades da área e a checagem de resultados de exames diretamente do site dos laboratórios.
De acordo com Psillakis, manter um site médico também ajuda o paciente a fazer uma pesquisa de mercado e comparar a formação e a experiência dos médicos, já que, na maioria dos casos, o currículo do profissional fica publicado em suas páginas eletrônicas. "Hoje em dia, é difícil saber quem é quem na medicina, e essa ferramenta permite uma averiguação."

CONSTRANGIMENTO
Em alguns casos, o contato via internet pode ajudar a quebrar o gelo em relação a algum tema delicado. "Muitas vezes, a pessoa não se sente à vontade para perguntar algumas coisas olho no olho. Já aconteceu de chegar uma mensagem após a consulta com uma pergunta que a paciente não teve coragem de fazer na hora. Algumas pessoas escrevem melhor do que falam", afirma o ginecologista Rogério Guimarães.
O médico começou a utilizar o correio eletrônico como meio de comunicação com seus pacientes recentemente. "Era um projeto antigo. Pode funcionar para a situação em que vivemos hoje em São Paulo, com problemas de horários e trânsito. Tenho um volume muito grande de telefonemas aos quais tenho que responder todos os dias e quero transferir isso para o e-mail", diz Guimarães.


Nos EUA, está sendo testado um sistema que conecta o paciente que tem doenças crônicas ao hospital por meio do aparelho de televisão de sua casa


De acordo com ele, essa nova ferramenta também pode servir para complementar ou relembrar alguma informação abordada no consultório. "Por exemplo, uma paciente que tem uma infecção grave e precisa tomar antibiótico. A concentração dela vai ficar no antibiótico. Explico que ela também pode usar um sabonete íntimo especial e fazer uma dieta. Há grande chance de ela se lembrar do antibiótico, mas se esquecer do sabonete e da dieta", diz o médico.
O ginecologista cita uma pesquisa publicada no "Journal of the Royal Society of Medicine", em 2003, apontando que de 40% a 80% dos pacientes tendem a esquecer o que lhes é dito na consulta assim que saem da sala do médico. "Às vezes, uma comunicação posterior pode facilitar", afirma o médico, que já passou por situação semelhante. "Tive que ir a um ortopedista por conta de uma doença no calcanhar. Ele pediu ressonância magnética e indicou também sessões de acupuntura e aplicações de gelo. Mas eu só lembrei de fazer a ressonância", afirma.
Cliente de Guimarães, a representante comercial Ana Maria Barranco, 42, conta que ele se tornou uma espécie de "confidente on-line". "Quando sinto qualquer coisa ou quando leio uma reportagem de saúde e fico com dúvidas, escrevo para ele." Ana diz que gosta da idéia de ter acesso ao profissional de saúde pela internet. "A vida é muito corrida. Não compensa você gastar uma hora de consulta para tirar uma dúvida pequena. Temos que usar a tecnologia a nosso favor."

TECNOLOGIA
Nos Estados Unidos, está sendo testado um novo sistema da Phillips que conecta, via conexão banda larga, o paciente que tem doenças crônicas ao hospital em que ele se trata por meio do aparelho de televisão de sua casa. Denominado Motiva, o sistema vem com equipamentos sem fio para que a pessoa possa medir seus sinais vitais (pressão arterial, batimentos cardíacos e peso) e transmitir os dados ao hospital. O enfermeiro que recebe o resultado, por sua vez, pode mandar de volta mensagens de orientação ou de motivação e até vídeos educacionais. O Motiva está em fase de teste e não tem data prevista para chegar ao Brasil.
Para os médicos que se valem da internet para se comunicar com seus pacientes, não é só o correio eletrônico que tem ajudado. Alguns profissionais da saúde já usam o site de relacionamentos virtuais Orkut para manter contato com seus clientes. A fisioterapeuta Fernanda Inácio, que já utilizou essa ferramenta para combinar horários de consultas, diz que foi convidada para entrar no site por uma paciente. "Decidi ficar antenada. Como meus pacientes têm consultas duas ou três vezes por semana, tenho um contato muito próximo com eles", afirma.


Alguns profissionais da saúde já usam, além do e-mail, o site de relacionamentos virtuais Orkut para manter contato com seus clientes


Ela também troca mensagens por celular. "Eles mandam torpedos, geralmente para remarcar uma consulta. É bom porque assim posso responder num intervalo. Falar ao telefone é mais complicado por causa da correria do dia-a-dia."
Segundo a fisioterapeuta, quando o paciente quer desmarcar o horário por se sentir desanimado com o tratamento, uma palavra de ânimo on-line pode ajudar. "A internet ajuda na evolução do tratamento, pois aproxima muito o profissional do paciente", considera.
Paciente de Fernanda Inácio, a professora Sueli Kubrusly, 51, diz que, em muitas ocasiões, ela a encorajou a não faltar às sessões. "Estou em casa de licença por causa de uma depressão e uso muito a internet. Comecei a entrar em contato com a fisioterapeuta por e-mail e, como temos um relacionamento muito bom, convidei-a para fazer parte do Orkut", relata.
Para Sueli, a rede torna o relacionamento com os médicos menos formal. "E é mais prático. Fico sem jeito de ficar telefonando porque ela pode estar em consulta."
Um dos motivos que afastou a empresária Renata Ferreira de Abreu, 30, do consultório de seu antigo dermatologista foi o fato de não conseguir tirar dúvidas remanescentes após as consultas médicas. "Nunca conseguia falar com ele por telefone. Se precisava de uma simples informação, tinha que marcar o retorno, mas isso, às vezes, levava dias."


Todos os profissionais de saúde que usam a internet para se comunicar com pacientes ressaltam: o contato virtual não substitui uma consulta médica


A empresária se surpreendeu quando sua nova dermatologista explicou que qualquer dúvida poderia ser esclarecida eletronicamente. "Tive o que pensei ser uma reação alérgica e descrevi os sintomas por e-mail. Quase imediatamente ela me respondeu dizendo que o que senti era normal, mas, caso não melhorasse em três dias, deveria procurá-la."
Foram dúvidas como reações adversas comuns ao tratamento ou até mesmo a forma de manusear um creme que impulsionaram a dermatologista de Renata, Carolina Ferolla, a elaborar um site, no ar desde o começo deste mês, em que responde às dúvidas mais freqüentes. "É uma maneira de "filtrar" as perguntas dos pacientes", diz ela, que recebe cerca de seis mensagens por dia.
Para Ferolla -que também usa webcam em suas consultas virtuais-, são três os tipos de paciente que costumam usar a internet para se corresponder com seus médicos: aquele que está fora da cidade ou do país, os que se esquecem de perguntar alguma coisas ou não se lembram do que foi dito no consultório e ainda os pacientes de primeira viagem, "que nunca se consultaram com aquele médico, mas escrevem perguntando detalhes sobre algum tratamento".

CUIDADOS
Todos os profissionais de saúde que usam a internet para se comunicar com pacientes ressaltam: o contato virtual não substitui, de forma nenhuma, uma consulta médica. "Há sempre a necessidade de examinar o paciente", afirma Eduardo Bueno.
A advogada Tatiana Affini Dicenzo, 26, que conversa com sua nutricionista por e-mail mesmo tendo consulta com ela a cada 15 dias, concorda. "O fato de conversarmos pela internet nunca me impediu de marcar as consultas regularmente. O contato por e-mail não invalida o pessoal", diz. No seu caso, o correio eletrônico é útil para combinar detalhes da dieta da semana ou para tirar dúvidas.
Eduardo Bueno lembra também que o médico que decide montar um canal de comunicação em seu site tem que reservar um tempo para responder aos e-mails com agilidade. "Tem gente que olha a internet como se fosse caixa de correio onde se pode deixar um monte de mensagens se acumulando. O ideal é dar uma resposta bem rápida", diz.
De acordo com Ricon Jr., o profissional que usa a rede deve tomar muito cuidado com a questão ética. "A consulta via internet não é muito bem regulamentada. Respondo às perguntas que posso e, quando há algo que não convém ser respondido devido aos bloqueios do Conselho Federal de Medicina, sou franco e explico que não é permitido", diz.
De fato, o conselho não deixa claro os limites do médico. "Deve-se usar o mesmo bom senso de uma comunicação feita por telefone", diz o cardiologista Roberto d'Avila, conselheiro e corregedor do CFM.
Ricon Jr. lembra também que é preciso tomar cuidado com a segurança da rede, já que não há como ter certeza de que o sigilo das mensagens é mantido. "Os pacientes dizem ao médico coisas íntimas, que, às vezes, nem o marido nem a mulher sabem. Nada que é sigiloso eu coloco na internet. Por ser uma área aberta, pode haver alguém acompanhando a troca de mensagens", alerta.
Fernanda Inácio diz que muitas vezes os pacientes querem expor um problema que não pode ser solucionado por e-mail. "Tem paciente que escreve que o marido teve uma distensão no futebol e me pergunta o que fazer. Nesse caso, não dá, tenho que ver pessoalmente. Tem coisa que é impossível de ser diagnosticada por e-mail."

Colaborou Marcos Dávila, da Reportagem Local

Texto Anterior: Alimentação: Leite de beber?
Próximo Texto: Consulta por e-mail pode?
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.