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Neurociência
Dormir para lembrar
Se você ainda é daqueles que acham que
passar um terço da
vida dormindo é perda de tempo, anote esta: o sono é fundamental para consolidar as memórias do dia.
Sem sono, nada feito.
Visto de fora, pode até parecer que o cérebro pare de
funcionar durante o sono.
Afinal, a função mais óbvia
do sono é "descansar" o cérebro das atividades do dia,
mesmo que ainda não se saiba o que isso significa em termos celulares. Perca uma
noite de sono, e a sensação de
exaustão mental no dia seguinte será garantida. Paradoxalmente, no entanto, o
cérebro não pára de funcionar durante o sono; ele funciona de modo diferente.
Uma das conseqüências
recém-descobertas desse
funcionamento diferente do
cérebro durante o sono é a
consolidação da memória,
quando as modificações nas
conexões cerebrais que começam a ser feitas durante o
aprendizado do dia são estabilizadas. É como se o cérebro passasse o dia fazendo
rascunhos em um bloco de
notas -o hipocampo- e, à
noite, tivesse a oportunidade
de passar as anotações a limpo, reescrevendo-as no córtex cerebral, liberado, graças
ao sono, das influências de
estímulos externos.
Os benefícios de uma noite
bem dormida, no entanto,
não se aplicam exclusivamente às tarefas do dia. O
simples fato de usar durante
o dia uma memória já instalada e consolidada anteriormente faz com que tudo comece de novo: a memória antiga se torna vulnerável a
modificações e passa por um
novo período de consolidação -para o qual o sono é
fundamental.
Pode parecer estranho tornar vulnerável uma memória
já bem instalada no cérebro,
mas a memória, afinal, não se
parece em nada com vídeos
que mostram sempre a mesma história cada vez que são
tocados: nossas memórias
mudam à medida que são
usadas. Graças a essa alteração pelo simples fato de ser
usada, o melhor exercício para a memória é usar a memória -e dormir ao fim do dia:
como o uso de uma memória
fortalece as conexões envolvidas, quanto mais se lembra
de uma coisa, mais fácil será
lembrar dela no futuro.
O terço adormecido da vida, portanto, é nossa possibilidade de rever constantemente os acontecimentos e
as lembranças do dia. Entre
outras coisas, é essa capacidade de aprender-e-consolidar-e-mudar-e-consolidar-de-novo que nos permite
aprimorar e reescrever continuamente nossa história. O
cérebro faz anotações, passa-as a limpo, mas sempre a lápis -o que garante muitas
oportunidades para refazer o
traço ao longo da vida.
SUZANA HERCULANO-HOUZEL, neurocientista, é professora da UFRJ e autora de "Sexo, Drogas, Rock'n'Roll & Chocolate" e de "O
Cérebro Nosso de Cada Dia" (ed. Vieira &
Lent)
suzanahh@folhasp.com.br
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