São Paulo, quinta-feira, 16 de maio de 2002
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Excesso de analgésico piora a dor e pode torná-la crônica; o tratamento correto ainda é pouco conhecido pela classe médica

Enxaqueca é só uma das 150 dores de cabeça

Alan Marques/Folha Imagem
Os 26 comprimidos de analgésicos consumidos diariamente foram responsáveis pelo aumento das dores de cabeça que tanto atormentaram a advogada Elaine Lucas, 38


BRUNO LIMA
FREE-LANCE PARA A FOLHA


"Enxaqueca tem cura. É como o câncer. Se diagnosticada e tratada a tempo e de maneira adequada, assim como muitas outras dores de cabeça, pode ser curada", afirma o pioneiro do estudo da dor de cabeça no Brasil, o professor Edgard Raffaelli Jr., 72. A conclusão do especialista se baseia em 46 anos de observação de pacientes com enxaqueca.


Para a felicidade dos pacientes, hoje não há dúvidas entre os especialistas sobre a existência de tratamento eficaz para a doença, que é herdada geneticamente. Alguns médicos, no entanto, preferem evitar a palavra cura. "Dizer ao paciente que não há cura, além de ser errado, desestimula o tratamento", diz Raffaelli. Esse tema controverso será discutido no Congresso Paulista de Cefaléia, que acontece amanhã e sábado, em Campos do Jordão (167 km de São Paulo). Raffaelli será homenageado por ter sido fundador da Sociedade Brasileira de Cefaléia e também da sociedade internacional e realizará uma exposição sobre a cura da enxaqueca.

"Doença é obscura"
A posição contrária à do médico será defendida no congresso pelo médico Wilson Sanvito, 67, professor de neurologia da Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo. "Respeito as idéias de Raffaelli, por isso faremos um debate. Mas não está escrito em lugar nenhum do mundo que enxaqueca tem cura", afirma Sanvito. Ele diz que a doença ainda é obscura em seus mecanismos e que longos períodos sem dor e sem medicação são possíveis, mas não a cura. Segundo vários especialistas ouvidos pela Folha, a afirmação de Raffaelli, apesar de não estar baseada em um trabalho científico já publicado, merece respeito, já que vem de alguém tão renomado como ele. "A única pessoa neste país que tem condições de dizer que enxaqueca tem cura é o Raffaelli", diz o responsável pelo ambulatório de cefaléia do Hospital das Clínicas de São Paulo, Getúlio Daré Rabello, 50. "Eu não sou nenhum mágico. Curar a enxaqueca significa tratar o paciente em toda a sua disfunção, e não apenas tratá-lo para evitar a dor", diz Raffaelli. Para ele, a enxaqueca é somente um dos sintomas de um distúrbio do sistema límbico. Tensão pré-menstrual, cãibra noturna e fotofobia, por exemplo, são alguns dos outros. A enxaqueca pode até ser o pior de todos, mas não é o único, diz Raffaelli (leia mais na pág. 10). E a enxaqueca também não é o único tipo de dor de cabeça. A medicina já descreveu mais de 150 formas, muitas delas bem curiosas, como as dores deflagradas por orgasmo, por sorvete, por esforço físico -chamada de cefaléia dos halterofilistas- e por nitritos e nitratos -batizada de dor de cabeça do cachorro-quente. E mais: a ciência também já comprovou que, para tratar muitas delas, os analgésicos não apenas não adiantam como são capazes de causar aumento da dor e até torná-la crônica. Essa não é nenhuma nova descoberta da medicina, dizem os especialistas. O que existe é pouca informação entre médicos e pacientes. "A situação é preocupante. Grande parte da comunidade médica ainda está despreparada para tratar dor de cabeça", diz o neurologista Pedro Moreira, 55, presidente da Sociedade Brasileira de Cefaléia. Segundo ele, a sociedade promove regularmente cursos para médicos, buscando informar os profissionais sobre quais são os tratamentos corretos para cada tipo de dor de cabeça. Há também palestras voltadas para leigos. O fato é que o desconhecimento só gera sofrimento, dando origem ao fenômeno chamado pelos médicos de "borboletas de consultório". A expressão é usada para pacientes que vivem uma verdadeira peregrinação em busca de um remédio para a sua dor. É o caso da aposentada Maria Abade. Dos seus 80 anos de vida, 66 foram de convivência diária com a enxaqueca. "Acordava e abria os olhos já com dor de cabeça", afirma. Ela chegou a se consultar com 22 médicos. "Eles me davam uma porção de remédios para tomar e diziam que era assim mesmo. Eu obedecia, mas só piorava." A aposentada viveu por décadas "voando" de médico em médico até encontrar o tratamento eficaz.

Dose máxima
Segundo estatísticas, 95% das pessoas experimentam dores de cabeça em alguma fase da vida. No entanto a maioria desconhece que existem tratamentos, e a dor acaba piorando em decorrência do abuso dos analgésicos, declara o neurologista Abouch Krymchantowski, 43, coordenador do Ambulatório de Cefaléias Crônicas do Instituto de Neurologia da UFRJ e fundador do Centro de Avaliação e Tratamento da Dor de Cabeça do Rio de Janeiro.
No Hospital das Clínicas de São Paulo, entre os pacientes que procuraram o ambulatório de cefaléia nos últimos dois anos, mais de 40% tinham dor de cabeça diária, e 21% abusavam de analgésicos.
A orientação dos médicos que tratam exclusivamente de dor de cabeça é que o consumo de analgésicos não deve ser superior a quatro vezes por mês.
O uso abusivo desses medicamentos pode causar uma queda na produção de endorfinas (os "analgésicos" naturais do cérebro), deixando o indivíduo mais susceptível à dor. Com isso, ele vai sentir necessidade de aumentar ainda mais a dose do remédio e, em consequência, terá também sua dor aumentada, num ritmo crescente até o momento em que o remédio simplesmente perde o seu efeito.



Texto Anterior: Firme e forte: Siga os dez mandamentos na sua caminhada
Próximo Texto: Dor de sorvete
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.