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Neurociência - Suzana Herculano-Houzel
Sobre poder tomar remédios
N
inguém gosta da
idéia de precisar
de um remédio
para o resto da vida, muito menos "para a cabeça". Recebi uma vez um e-mail de um rapaz que sofria
de transtorno obsessivo-compulsivo e aceitara de sua
psiquiatra uma medicação
que se mostrou eficaz.
A razão do e-mail, contudo, era a revolta do rapaz ao
descobrir que precisaria tomar a medicação diariamente, pelo resto da sua vida, para permanecer bem. Indignado, resolveu parar de tomar o remédio porque não
queria ficar "preso a ele pelo
resto da vida". Ele me perguntava: é isso mesmo? Se
for, isso não é ruim?
Minha resposta foi: "Sim, é
isso mesmo. Algumas condições não têm cura, apenas
tratamento para o resto da
vida. E não, isso não é ruim".
É uma questão de ponto de
vista, e eu lhe ofereci o meu.
Na verdade, acho uma
bênção que exista um tratamento para o resto da vida.
Sei disso por experiência
própria. Tenho um problema
cardíaco crônico que requer
medicação diária para o resto da vida: um beta-bloqueador, que me poupa de ataques repentinos de taquicardia e visitas ao pronto-socorro com o coração batendo
180 vezes por minuto.
Dada minha condição,
acho maravilhoso que uma
pílula diária me permita viver tranqüila e até esquecer
que tenho uma arritmia. Da
mesma forma, dou graças
aos cientistas que desenvolveram o antipsicótico de última geração que uma amiga
querida tomará pelo resto da
vida, ficando assim livre dos
surtos de delírio paranóide
que quase lhe arruinaram a
vida poucos anos atrás. Ela
pode ter uma vida normal, rica e plena e ser uma pessoa
saudável como qualquer outra -enquanto tomar diariamente seu remédio.
Claro que é indesejável depender de algo externo ao
corpo para ter bem-estar.
Mas isso não é novidade nem
se aplica somente a remédios. Quem prova os benefícios de sabão, escova e pasta
de dentes não quer mais viver sem eles. É uma dependência boa, que deixa a vida
melhor, cujos benefícios
compensam de longe o
transtorno eventual de ficar
sem sabonete em casa (a farmácia da esquina resolve o
problema com um telefonema), bem como o risco de
efeitos colaterais como irritações na pele por uso excessivo ou inadequado.
O rapaz me escreveu de
volta. Tinha mudado de idéia
e ia voltar a tomar o remédio.
Fiquei feliz por ele.
Se fosse 50 anos atrás, eu
talvez já tivesse morrido de
um ataque cardíaco aos 30, e
ele estaria fadado a uma vida
atormentada. Mas hoje existe uma escolha -e ela está
em nosso poder.
SUZANA HERCULANO-HOUZEL, neurocientista, é professora da UFRJ e autora de "O
Cérebro Nosso de Cada Dia" (ed. Vieira &
Lent) e de "O Cérebro em Transformação"
(ed. Objetiva)
suzanahh@folhasp.com.br
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