São Paulo, quinta-feira, 20 de abril de 2006
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Tecnologia

Cada vez mais especialistas oferecem tratamentos com equipamentos que lembram videogames para tratar doenças que vão do AVC à insônia

Gameterapia

AMARÍLIS LAGE
DA REPORTAGEM LOCAL

AMARÍLIS LAGE
DA REPORTAGEM LOCAL

O objetivo do jogo parece fácil: manter o avião voando em torno de uma ilha enquanto uma música suave toca. Mas a brincadeira logo se mostra mais séria. Em vez de utilizar um mouse ou um console, você precisa controlar o jogo com sensores ligados à sua cabeça. O avião só continuará a voar se as suas ondas cerebrais alcançarem um padrão pré-determinado. Parece impossível? Não é. Cada vez mais especialistas oferecem tratamentos com programas que lembram videogames e levam ao domínio de funções fisiológicas.
A idéia básica por trás dessas técnicas é a de treinamento: a cada vez que o corpo reage "certo", o paciente vê, imediatamente, o resultado positivo na tela do computador -daí o nome "biofeedback", termo que pode ser traduzido como resposta biológica.
Quem sofre de estresse, por exemplo, pode se deparar com um jogo de arco-e-flecha virtual, no qual só se ganham pontos se a musculatura estiver relaxada. O que o paciente vai fazer com tantos "pontos"? Nada. Mas, para o cérebro, isso já é o suficiente para estabelecer uma relação de recompensa.
"Começo a sessão e, quando vejo que a pessoa está bem calma, provoco: "como foi aquela briga com seu chefe?" Ela se contrai toda, os sensores captam a mudança e as flechas deixam de atingir o alvo. Aí ela tem de se obrigar a relaxar novamente", conta a psicóloga Cacilda Amorim, diretora do Instituto Paulista de Déficit de Atenção.


Com o tempo, a tendência é que a pessoa aprenda a controlar o corpo para dar a resposta fisiológica certa -mesmo sem ter a mínima idéia de como consegue fazer isso

Com o tempo, a tendência é que a pessoa aprenda a controlar o corpo para dar a resposta fisiológica certa -mesmo sem ter a mínima idéia de como consegue fazer isso. "A gente não precisa saber descrever para saber fazer", diz Amorim.
O designer gráfico Marcos Fujimoto, 29, procurou o instituto em setembro do ano passado por sentir que seu raciocínio estava lento e a memória, fraca. O primeiro exame de "neurofeedback" mostrou que ele apresentava um excesso de ondas alfa (de baixa amplitude, associadas à sonolência).
"Até abandonei um emprego por causa disso. Eu queria fazer mais coisas, mas não conseguia e ficava ansioso e estressado. Aos poucos, estou conseguindo diminuir a quantidade de ondas lentas", diz. Como? "Não sei explicar. Fico quieto, concentro-me no jogo e consigo."
A técnica também se aplica ao desenvolvimento de habilidades que, embora consideradas de fácil controle pela maioria das pessoas, são um obstáculo para outras.
Os jogos são muito utilizados, por exemplo, para tratar casos de insônia. No hospital Albert Einstein (SP), o "biofeedback" é aplicado principalmente na recuperação do aparelho nervoso central mas também foi adotado em terapias que buscam a reeducação do assoalho pélvico, o que ajuda pessoas com incontinência urinária.

CRIANÇAS E JOVENS
Na Avape (Associação para Valorização e Promoção de Excepcionais), os jogos eletrônicos se tornaram um forte aliado de pessoas com dificuldades para falar ou com problemas de aprendizagem.
Num desses programas, a meta é colher maçãs -mas o bonequinho só sobe quando o jogador pronuncia no microfone o som correto. Se confundir "fê" com "vê", nada feito.
"A brincadeira aumenta a motivação do paciente. É difícil fazer uma criança se concentrar em exercícios assim, elas acabam achando chato. Com o jogo, a terapia fica mais estimulante, e eu consigo avaliar estatisticamente o avanço das sessões", conta a fonoaudióloga Patrícia Helena Cereguim.
Letícia Ari, 10, tem transtorno misto de desenvolvimento e vai três vezes por semana à instituição. Na última semana, sua tarefa era conduzir uma formiga em direção aos doces espalhados por um labirinto. Brincadeiras como essa tiveram um reflexo direto no desenvolvimento dela, conta a mãe, a dona-de-casa Clélia Pereira Ari, 42.
"Há três anos, ela não tinha coordenação motora nem para segurar um prato ou se vestir. Na semana passada, foi capaz de ler, em voz alta, uma frase inteira na escola. O melhor de tudo é que isso foi acompanhado de um aumento na auto-estima dela."

IDOSOS
Apesar de os jogos eletrônicos terem um maior apelo junto a crianças e adolescentes, a proposta não é restrita a essas faixas etárias. O engenheiro aposentado Carlos Pavel, 79, conseguiu trocar a cadeira de rodas por uma bengala após realizar sessões de "biofeedback" em uma clínica especializada, em Brasília.
Ele começou a sentir dificuldades para caminhar há seis anos. "Pensei que era velhice, mas era poliomiosite", conta Pavel. Após realizar um tratamento com cortisona, ele foi considerado curado, mas seus músculos estavam muito fracos. "Eu mal conseguia segurar um dicionário", lembra.
A reabilitação envolveu sessões de "biofeedback", nas quais Pavel era estimulado a enviar impulsos elétricos para algumas regiões do corpo. O esforço não resultava em nenhum movimento significativamente perceptível, mas era captado pelos sensores e refletido na tela do computador.
Após três meses de tratamento, ele começou a sentir os primeiros resultados. Hoje, dois anos depois, Pavel consegue caminhar só com o auxílio de uma bengala. "Subo até escadas", vangloria-se. "Minha meta agora é caminhar ereto, por isso estou trabalhando os músculos das costas", diz ele, que faz duas sessões por semana, de quase 50 minutos cada uma.
A duração do tratamento depende de cada caso, afirma a fisioterapeuta Karla Passos, 35, que atende Pavel. "O paciente participa ativamente do processo, por isso o resultado depende da capacidade de concentração dele. É diferente de um tratamento feito com remédios", diz Passos.

SEM EFEITOS COLATERAIS
Uma das vantagens desse procedimento, aliás, é que ele não gera efeitos colaterais. Já o problema é que nem sempre o recurso será bem-sucedido. "O limite está na lesão. Se esse canal que liga o cérebro à região afetada estiver inutilizado, não há como recuperar por meio do "feedback". Mas há casos de pessoas que ti-veram AVC [termo técnico para designar um derrame cerebral] e conseguiram recuperar funções que haviam sido afetadas", afirma a psicóloga Tereza Pita, que aplica o método em sua clínica, em Brasília.
De acordo com o médico fisiatra Cícero Vaz, 34, o paciente precisa ter as funções cognitivas preservadas (para entender o que está sendo pedido a ele no exercício) e não pode apresentar hipertonia (tensão muscular extremamente forte) -embora a técnica possa ser utilizada para estimular algumas pessoas a relaxarem os músculos, há um limite a partir do qual o procedimento não tem efeito.
Além disso, Vaz ressalta que a técnica não exclui as outras formas de tratamento. "Nós nunca usamos o biofeedback fora de um contexto global. Há casos, por exemplo, em que um exercício tradicional pode gerar resultados muito melhores. Não é porque determinado equipamento usa uma tecnologia mais avançada que ele deve ser indicado para tudo."
Na saúde, assim como no lazer, os jogos eletrônicos devem ser encarados como uma ferramenta com a qual é possível ganhar mais "pontos" -mas não a única solução.


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