São Paulo, quinta-feira, 24 de maio de 2001
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s.o.s. família

ROSELY SAYÃO

Filhos transformados em pai dos pais

Para minha surpresa, tenho também leitores muito jovens nesta coluna. Recebi a correspondência de uma garota que, entre vários comentários, fez sugestão para um artigo: que eu falasse a respeito de como os filhos devem agir quando sabem que um dos pais tem um relacionamento extraconjugal ou, como disse ela, tem um amante. Isso me fez lembrar uma carta, recebida há mais tempo, que contava as confidências sexuais compartilhadas entre pais e filhos. Bem, vamos refletir sobre essa confusão em que muitos pais se metem no relacionamento com filhos adolescentes.
Talvez a primeira coisa a chamar a atenção dos pais seja o fato de que um adolescente não é ainda um adulto. Tornar-se adolescente significa sair da tutela absoluta dos pais e iniciar um caminho próprio na maneira de pensar e de agir, na valorização de determinadas condutas e princípios, na busca de valores pessoais, na discriminação do que é bom para ele e do que não é, por exemplo. Mas tudo isso o jovem faz ainda sob o domínio da insegurança de ser sozinho e autônomo, totalmente responsável por suas escolhas e decisões.
E é por isso que ele mal suporta seus segredos: busca compartilhar com os pares suas angústias, suas descobertas, seus enganos e equívocos, seus anseios e suas esperanças. Que adolescente não passa horas e horas falando ao telefone com amigos ou na internet? Aparentemente, não há conteúdo nenhum nessas longas conversas, muitas vezes motivo de rusgas familiares. Mas há: é a busca de companhia nessa tarefa solitária que é viver por conta própria. Mas o jovem busca, para isso, os pares -ou o que ele considera como.
E o que acontece, nesse momento de passagem, se os pais buscam a cumplicidade do filho para determinados assuntos de sua exclusiva competência na vida? E não estou me referindo apenas a assuntos de conteúdo sexual, que é o caso dos exemplos de hoje, mas de toda sorte de situações em que o filho deveria estar fora. Exemplos não faltam: são os motivos de conflitos entre os pais, as brigas pela pensão, no caso de separação, as causas que motivaram a separação, determinadas decisões profissionais, entre tantas outras.
Quando se vê colocado como interlocutor dos pais nesses assuntos, o jovem se perde um pouco mais em seu caminho: na ânsia de responder à demanda dos pais, ele busca ajudar e entender, ele resolve opinar, tomar posição, enfrentar. Ele ocupa, portanto, a posição que é dos pais. E, enquanto se esforça para dar conta dessa tarefa, se confunde todo em sua própria busca, pois seus valores estão em formação, não têm ainda sólidas bases. Se ele estava separando-se dos pais, é então que vê um bom motivo para grudar-se novamente neles, sem ao menos perceber.
Se um adulto que é pai ou mãe quer conversar a respeito de um tema que lhe é espinhoso ou que lhe provoca angústia, conflito, se quer desabafar suas frustrações, se quer dividir a responsabilidade pelas atitudes que toma, que procure seus pares! Se quer ter uma vida conjugal diferente da usual, que saiba manter segredo disso.
Isso não significa, é claro, deixar o filho totalmente à parte das venturas e desventuras da vida em família. O filho que cresce pouco a pouco assume um outro lugar nessa estrutura familiar, e sua participação deve ser reconhecida, permitida, assegurada. Mas ele deve ser poupado dos assuntos que dizem respeito apenas à vida pessoal dos pais. É o caso, por exemplo, da vida sexual.
Relacionamentos extraconjugais, decepções no casamento, estilos de viver o erotismo, segredos dos amigos ou parentes, por exemplo, não devem ser passados de pais para filhos. A herança a deixar a eles é outra bem diferente.
Buscar ou permitir que o filho tenha acesso à vida privada dos pais é transformar o filho em pai dos pais; e ele já tem muito trabalho para se transformar em seu próprio pai e sua própria mãe.


ROSELY SAYÃO é psicóloga, consultora em educação e autora de "Sexo É Sexo" (ed. Companhia das Letras); e-mail: roselys@uol.com.br



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