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LIMITES
Excluídos devem ser alvo principal
MARCELO LEITE
especial para a Folha
Os seres humanos nascem dignos, segundo as declarações internacionais, mas
em toda parte se encontram marginalizados. Cresce o número de tratados e o
de direitos por eles reconhecidos, mas também o de "excluídos". Chega a ser sintomática a disseminação desse nome eufemístico para o que antes de 1989 ainda se chamava de pobres,ou oprimidos.
Apesar da contradição, da oposição com direitos mais tradicionais e das dúvidas sobre sua viabilidade, os chamados direitos sociais e econômicos nunca tiveram tão grande aceitação no mundo.
Tensão entre eles e os direitos civis e políticos herdados do século 18 sempre houve. A inclusão dos direitos
a trabalho, educação e saúde entre os direitos humanos, com a Declaração Universal de 1948, foi um problema desde o início. Conceitual, antes de mais nada:
não seriam sequer direitos, mas simples expectativas,
pretensões, quando muito um programa.
Essas aspirações igualitárias, provenientes da tradição distributivista, chegaram ao mundo da negociação
diplomática como disputa política: "A Declaração
Universal, que consagrou essa razão abrangente da
humanidade, a idéia dos direitos humanos como um
tema global, se inseriu na realidade política de um
mundo assinalado pela bipolaridade", diz Celso Lafer,
57, representante brasileiro junto a ONU em Genebra
(Suíça) e autor de "A Reconstrução dos Direitos Humanos". "A consequência disso foi que, na confrontação ideológica desse período, os Estados Unidos deram ênfase aos direitos civis e políticos, que são parte
integrante da herança liberal. A União Soviética deu
importância aos direitos econômicos e sociais, que são
parte da herança socialista."
PACTOS SEPARADOS. No auge da Guerra Fria, o conflito entre as duas primeiras gerações de direitos -civis e políticos "versus" sociais e econômicos- encontrou uma solução de compromisso. A tentativa de
avançar na aplicação da Declaração de 1948 resultou,
18 anos depois (1966), em dois pactos internacionais
separados, um para cada grupo de direitos. A dicotomia estava sacramentada.
Os dois documentos seguiram linhas mais ou menos
paralelas de regulamentação, como a criação de comissões para acompanhar cada país. Mas subsiste
uma diferença: os EUA, mesmo considerando-se paladinos dos direitos humanos (leia-se: civis e políticos)
nunca ratificaram o Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, apesar de o terem
assinado em outubro de 1977.
O Brasil tornou-se membro dos dois pactos em janeiro de 1992. Entre as adesões mais recentes está a da
China: novembro de 1997 (direitos sociais e econômicos) e outubro passado (civis e políticos).
A adesão tardia de países em desenvolvimento ao
pacto social e econômico decorreu de outra polarização, a Norte-Sul. Essa classe de direitos se caracteriza
por gerar obrigações aos Estados, que têm de investir
recursos para cumpri-los. Uma coisa é garantir liberdade de expressão. Outra, bem diversa, é acabar com o
analfabetismo de toda uma população.
Da vulnerabilidade dos países subdesenvolvidos começou a nascer uma terceira geração de direitos. Eles
iriam ganhar expressão diplomática na Declaração e
Programa de Ação de Viena, de 1993, que teve entre
seus principais negociadores o atual embaixador do
Brasil na Suécia, Gilberto Saboia, 56.
O CONSENSO DE VIENA. Para Saboia, a dicotomia consagrada nos pactos de 1966 foi superada na Declaração
de Viena com a noção de direito ao desenvolvimento
No consenso obtido, foi visto como um direito. dos indivíduos, não só dos Estados. "É
uma espécie de síntese de todos os
direitos humanos", diz o embaixador, pois englobaria na idéia de
realização plena da pessoa tanto
direitos políticos quanto sociais.
A Declaração de Viena de 1993
tem cem artigos, mais que o triplo
da Declaração de 1948.
O detalhamento é sua marca
principal. Há três artigos dedicados a minorias, cinco a povos indígenas, três a migrantes, onze a mulheres e nove a crianças.
Numa perspectiva liberal, essa
minúcia seria indício de inviabilidade. Boas intenções, apenas, que
não seria preciso nem prudente codificar como direitos (crítica comum, também, à Constituição de 1988).
Garantido o progresso econômico, as aspirações seriam naturalmente satisfeitas.
Não é o que pensa o filósofo italiano Norberto Bobbio. Em seu livro "A Era dos Direitos", ele elogia como
uma forma de fortalecimento o que chama de "especificação" dos direitos humanos.
No passado, o conceito genérico de liberdade acabou
sendo determinado numa série de liberdades mais
concretas (de opinião, imprensa, reunião etc.). Da noção de homem em geral se passou à de cidadão. Depois
dos anos 60, começou a ser respondida a questão: que
cidadãos? Mulheres, crianças, migrantes, deficientes.
É o que Lafer descreve, com expressão do pensador
Michael Walzer, como adensamento da "moralidade
rala" característica da esfera internacional. "O que é
preciso fazer é adensar o tema dos direitos humanos,
tanto no plano interno quanto no internacional."
"Todo o ciclo de conferências internacionais constitui um caldo de cultura importante", afirma o cientista
social Tullo Vigevani, 56. Professor de política na
Unesp especializado em relações internacionais, ele
atribui a revalorização de direitos sociais e econômicos à crescente "universalização dos valores ocidentais
e à queda do Muro de Berlim".
Bobbio, Lafer, Saboia, Vigevani -todos concordam, porém, que permanece viva a diferença de natureza entre direitos civis e políticos,
de um lado, e direitos sociais e econômicos, de outro. Ainda é difícil
de imaginar que os últimos, os de
segunda geração, deixem as leis
brandas das declarações ("soft
law") pelas duras obrigações das
convenções ("hard law").
Talvez nunca se chegue a isso. A
evolução recente da questão dos
direitos humanos, como a da quarta leva de direitos (os das gerações
futuras, caso da proteção ambiental), sugere que o principal controle será o da opinião pública internacional, pelas organizações não-governamentais.
"O reconhecimento da importância dos direitos sociais é vigoroso. O que as pessoas não sabem exatamente como fazer é gerar os meios, qual é o saber técnico pelo qual se convertem esses valores em políticas
públicas aptas a lidar com a situação", alerta Lafer.
Diante deste paradoxo, agravado pela crise mundial,
são duas as possibilidades de reação moral: render-se
ao imobilismo economicista, ou lutar pela neodistributivista "inclusão social". Norberto Bobbio recomendou, ainda em 1990, a segunda saída: "Busquemos
não aumentar esse atraso com nossa incredulidade,
com nossa indolência, com nosso ceticismo".
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