São Paulo, quinta, 3 de dezembro de 1998

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LIMITES

Excluídos devem ser alvo principal

MARCELO LEITE
especial para a Folha

Os seres humanos nascem dignos, segundo as declarações internacionais, mas em toda parte se encontram marginalizados. Cresce o número de tratados e o de direitos por eles reconhecidos, mas também o de "excluídos". Chega a ser sintomática a disseminação desse nome eufemístico para o que antes de 1989 ainda se chamava de pobres,ou oprimidos. Apesar da contradição, da oposição com direitos mais tradicionais e das dúvidas sobre sua viabilidade, os chamados direitos sociais e econômicos nunca tiveram tão grande aceitação no mundo.

Tensão entre eles e os direitos civis e políticos herdados do século 18 sempre houve. A inclusão dos direitos a trabalho, educação e saúde entre os direitos humanos, com a Declaração Universal de 1948, foi um problema desde o início. Conceitual, antes de mais nada: não seriam sequer direitos, mas simples expectativas, pretensões, quando muito um programa.
Essas aspirações igualitárias, provenientes da tradição distributivista, chegaram ao mundo da negociação diplomática como disputa política: "A Declaração Universal, que consagrou essa razão abrangente da humanidade, a idéia dos direitos humanos como um tema global, se inseriu na realidade política de um mundo assinalado pela bipolaridade", diz Celso Lafer, 57, representante brasileiro junto a ONU em Genebra (Suíça) e autor de "A Reconstrução dos Direitos Humanos". "A consequência disso foi que, na confrontação ideológica desse período, os Estados Unidos deram ênfase aos direitos civis e políticos, que são parte integrante da herança liberal. A União Soviética deu importância aos direitos econômicos e sociais, que são parte da herança socialista."

PACTOS SEPARADOS. No auge da Guerra Fria, o conflito entre as duas primeiras gerações de direitos -civis e políticos "versus" sociais e econômicos- encontrou uma solução de compromisso. A tentativa de avançar na aplicação da Declaração de 1948 resultou, 18 anos depois (1966), em dois pactos internacionais separados, um para cada grupo de direitos. A dicotomia estava sacramentada.
Os dois documentos seguiram linhas mais ou menos paralelas de regulamentação, como a criação de comissões para acompanhar cada país. Mas subsiste uma diferença: os EUA, mesmo considerando-se paladinos dos direitos humanos (leia-se: civis e políticos) nunca ratificaram o Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, apesar de o terem assinado em outubro de 1977.
O Brasil tornou-se membro dos dois pactos em janeiro de 1992. Entre as adesões mais recentes está a da China: novembro de 1997 (direitos sociais e econômicos) e outubro passado (civis e políticos).
A adesão tardia de países em desenvolvimento ao pacto social e econômico decorreu de outra polarização, a Norte-Sul. Essa classe de direitos se caracteriza por gerar obrigações aos Estados, que têm de investir recursos para cumpri-los. Uma coisa é garantir liberdade de expressão. Outra, bem diversa, é acabar com o analfabetismo de toda uma população.
Da vulnerabilidade dos países subdesenvolvidos começou a nascer uma terceira geração de direitos. Eles iriam ganhar expressão diplomática na Declaração e Programa de Ação de Viena, de 1993, que teve entre seus principais negociadores o atual embaixador do Brasil na Suécia, Gilberto Saboia, 56.

O CONSENSO DE VIENA. Para Saboia, a dicotomia consagrada nos pactos de 1966 foi superada na Declaração de Viena com a noção de direito ao desenvolvimento No consenso obtido, foi visto como um direito. dos indivíduos, não só dos Estados. "É uma espécie de síntese de todos os direitos humanos", diz o embaixador, pois englobaria na idéia de realização plena da pessoa tanto direitos políticos quanto sociais.
A Declaração de Viena de 1993 tem cem artigos, mais que o triplo da Declaração de 1948.
O detalhamento é sua marca principal. Há três artigos dedicados a minorias, cinco a povos indígenas, três a migrantes, onze a mulheres e nove a crianças.
Numa perspectiva liberal, essa minúcia seria indício de inviabilidade. Boas intenções, apenas, que não seria preciso nem prudente codificar como direitos (crítica comum, também, à Constituição de 1988). Garantido o progresso econômico, as aspirações seriam naturalmente satisfeitas.
Não é o que pensa o filósofo italiano Norberto Bobbio. Em seu livro "A Era dos Direitos", ele elogia como uma forma de fortalecimento o que chama de "especificação" dos direitos humanos.
No passado, o conceito genérico de liberdade acabou sendo determinado numa série de liberdades mais concretas (de opinião, imprensa, reunião etc.). Da noção de homem em geral se passou à de cidadão. Depois dos anos 60, começou a ser respondida a questão: que cidadãos? Mulheres, crianças, migrantes, deficientes. É o que Lafer descreve, com expressão do pensador Michael Walzer, como adensamento da "moralidade rala" característica da esfera internacional. "O que é preciso fazer é adensar o tema dos direitos humanos, tanto no plano interno quanto no internacional."
"Todo o ciclo de conferências internacionais constitui um caldo de cultura importante", afirma o cientista social Tullo Vigevani, 56. Professor de política na Unesp especializado em relações internacionais, ele atribui a revalorização de direitos sociais e econômicos à crescente "universalização dos valores ocidentais e à queda do Muro de Berlim".
Bobbio, Lafer, Saboia, Vigevani -todos concordam, porém, que permanece viva a diferença de natureza entre direitos civis e políticos, de um lado, e direitos sociais e econômicos, de outro. Ainda é difícil de imaginar que os últimos, os de segunda geração, deixem as leis brandas das declarações ("soft law") pelas duras obrigações das convenções ("hard law").
Talvez nunca se chegue a isso. A evolução recente da questão dos direitos humanos, como a da quarta leva de direitos (os das gerações futuras, caso da proteção ambiental), sugere que o principal controle será o da opinião pública internacional, pelas organizações não-governamentais.
"O reconhecimento da importância dos direitos sociais é vigoroso. O que as pessoas não sabem exatamente como fazer é gerar os meios, qual é o saber técnico pelo qual se convertem esses valores em políticas públicas aptas a lidar com a situação", alerta Lafer.
Diante deste paradoxo, agravado pela crise mundial, são duas as possibilidades de reação moral: render-se ao imobilismo economicista, ou lutar pela neodistributivista "inclusão social". Norberto Bobbio recomendou, ainda em 1990, a segunda saída: "Busquemos não aumentar esse atraso com nossa incredulidade, com nossa indolência, com nosso ceticismo".



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