São Paulo, quinta, 3 de dezembro de 1998

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JUSTIÇA

Para reprimir ditadores e facínoras

LUÍS FRANCISCO CARVALHO FILHO
da Equipe de Articulistas

Parece cenário de ficção científica. Um tribunal paira acima dos Estados, das nacionalidades, dos idiomas e julga os mais graves delitos contra os direitos humanos. Juízes de diferentes raças e de culturas jurídicas distintas se reúnem para deter e condenar ditadores e facínoras. Em 17 de julho deste ano, uma conferência de representantes plenipotenciários, convocada pela Organização das Nações Unidas (ONU), aprovou em Roma o estatuto do Tribunal Penal Internacional. Depois de anos de negociação, o documento recebeu o apoio da maioria absoluta das delegações: 120 votos favoráveis, 7 contrários e 21 abstenções. O tribunal se instalará em Haia, na Holanda, nos próximos anos, quando pelo menos 60 países aderirem formalmente ao tratado internacional.
É como se a globalização, depois de desmantelar fronteiras econômicas, tivesse criado dinâmica própria e aberto uma fenda no conceito de soberania nacional. No plano teórico, quando se trata de autoridade para assuntos de interesse interno, os Estados não admitem um poder concorrente. O tribunal, apesar das cautelas inseridas em seu estatuto, significa um sinal de ruptura da antiga ordem mundial.
Duas forças se opõem no processo de criação do tribunal da ONU. Na elaboração do estatuto, prevaleceu, em boa medida, a plataforma adotada por uma associação informal de países, liderada pela Austrália e pelo Canadá, que se tornou conhecida como "like minded group" (expressão em inglês para "grupo que pensa em comum"). Sensível à pressão das organizações não-governamentais e politicamente empenhada em garantir princípios básicos de autonomia e eficácia para o tribunal, querem que as convenções internacionais de direitos humanos deixem de ser meras cartas de intenção.
Em contrapartida, há uma poderosa resistência. Militares de todo o mundo, independentemente de procedência ou ideologia, desconfiam da novidade. Sem dúvida, eles são réus em potencial: não por gostar de atrocidades, mas por estarem fisicamente mais próximos de onde elas costumam acontecer.
O fato é que China, Estados Unidos, Filipinas, Índia, Israel, Sri Lanka e Turquia votaram contra o estatuto. É uma minoria de Estados, não de poder. Indiscutivelmente, o tribunal nasce frágil: cerca da metade da população mundial está, a priori, fora da sua esfera de proteção.
A história registra a instalação de tribunais penais internacionais "ad hoc", para a realização de julgamentos específicos. O mais conhecido foi o de Nurembergue, para a condenação dos nazistas. Recentemente, dois tribunais foram instituídos pelo Conselho de Segurança da ONU, um para a antiga Iugoslávia (1993), outro para Ruanda (1994).
Pela primeira vez, entra em cena um tribunal permanente para o julgamento criminal de pessoas, para receber denúncias contra cidadãos, militares e autoridades de qualquer país que aderir ao tratado, indistintamente. No fundo, este é o motivo de tanta hesitação: tribunal bom é tribunal para os outros...
Em tese, até chefes de Estado no exercício de suas funções podem ser réus no tribunal. Não é necessário esperar que os responsáveis pelas graves violações deixem o poder e envelheçam.
Estima-se que a existência do tribunal, por si só, já exerceria uma função civilizatória e que, com o tempo, a adesão tende a se generalizar. O estatuto universaliza o repúdio a determinadas políticas de Estado -como o ataque a civis, escravidão, racismo, tortura, perseguição de minorias, desaparecimento forçado de pessoas-, estimula o próprio país a puni-las e difunde princípios humanitários de direito, como a irretroatividade da norma penal e a rejeição da pena de morte.
Os adversários temem a banalização do tribunal, a interferência indevida da comunidade internacional em acontecimentos não tão relevantes assim. Os Estados Unidos resistem à idéia porque temem a articulação de acusações frívolas e políticas e o julgamento por juízes estrangeiros.
O texto final do estatuto, com 128 artigos, reflete impasses, contradições e ambiguidades dessa disputa. O tribunal aparece como um organismo formalmente autônomo, mas uma teia de amarras, pesos e contrapesos, procura equilibrar sua atuação.
A corte foi concebida para intervir em casos excepcionais e graves. Em princípio, a morte isolada de um índio não é motivo para a abertura do processo internacional: o genocídio se caracteriza pela intenção de eliminar, ainda que parcialmente, um grupo étnico ou religioso. Crime contra a humanidade pressupõe um ataque sistemático à população civil. Crimes de guerra interessam quando praticados em larga escala ou como parte de uma estratégia. Em relação aos crimes de agressão, havia tanta discórdia que a definição ficou para depois.
É dever do Estado julgar, internamente, o autor do delito. A jurisdição do tribunal é complementar e só se configura em duas hipóteses: em caso de "incapacidade", quando, por exemplo, ocorrer o "colapso" do sistema judicial interno, ou quando se verificar que o Estado não está realmente disposto a levar a cabo a investigação ou o processo contra o criminoso.
O passado não é da sua conta. Desse julgamento pelo menos, o general chileno Augusto Pinochet e outros tiranos de antigamente estarão livres. Para que uma acusação seja viável, é necessário que o fato ocorra após o estatuto entrar em vigor. É necessário, ainda, que o Estado no qual o crime aconteceu ou Estado da nacionalidade do réu tenha aderido ao tratado.
A promotoria tem iniciativa própria. Pode agir "ex-officio" estimulada até por organizações não-governamentais. Em compensação, seus atos passam pelo controle de uma câmara preliminar de julgamento ("pre-trial chamber"), que decide sobre a instauração do processo e pode conter os abusos do promotor. Outros juízes julgarão o mérito da acusação; outros ainda, os recursos.
A adesão ao tratado não comporta reservas. Os Estados ratificam o estatuto como um todo, sem ressalvas, o que pode gerar dificuldades internas (leia texto ao lado sobre a adesão do Brasil).
Pragmática, a Conferência de Roma reservou uma margem de intervenção para o todo-poderoso Conselho de Segurança da ONU: investigações e processos não dependem de sua autorização prévia, mas pode editar resoluções suspendendo-os pelo prazo de 12 meses, prorrogável, e, assim, superar eventuais impasses diplomáticos e políticos. Afinal, tão importante quanto definir as condutas e os procedimentos é ampliar a aceitação da corte e ratear o elevado custo financeiro da sua manutenção.
Há um longo caminho a percorrer até que o panorama futurista e utópico de um tribunal penal internacional, eficaz e independente, materialize-se. Mas um primeiro passo já foi dado.


Luís Francisco da Silva Carvalho Filho, advogado, acompanhou a Conferência de Roma como observador nomeado pela Secretaria Nacional de Direitos Humanos.



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