São Paulo, domingo, 17 de maio de 1998

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A máquina do clima


Um aumento da temperatura média na Terra pode ocasionar uma elevação dos oceanos, inundando ilhas e cidades costeiras; mas não há, até agora, provas concretas de que isso venha a ocorrer



Na média, as águas dos oceanos estão subindo 1 a 2 milímetros por ano, segundo dados fornecidos pelo satélite Topex/Poseidon da Nasa, uma taxa considerada aceitável pelos estudiosos


CÁSSIO LEITE VIEIRA
especial para a Folha

2100. Um banhista chega à praia com seu equipamento básico: guarda-sol e uma escada para ser fincada nas areias submersas. A temperatura média da Terra está cerca de 4 graus mais alta e, como resultado, as água dos oceanos dilataram e subiram 1 metro.
A maioria das cidades asiáticas está inundada. Centenas de ilhas do Pacífico formam uma versão moderna da fantástica civilização Atlântida. Refugiados ambientais vagam aos milhões pela Terra. Segundo o mais importante documento sobre mudança climática, o cenário descrito, é possível.
A máquina que governa o clima global é muito complicada. Envolve interações complexas entre oceanos, massa dos continentes, regime de chuvas, correntes marítimas, geleiras, fauna, flora, radiação solar, entre outros fatores.
O clima é mais ou menos como o mecanismo de um relógio suíço. Desregular minimamente uma só das centenas de diminutas peças pode causar alterações imprevisíveis em seu funcionamento.
A diferença é que o olho clínico de um relojoeiro poderia dizer se sua máquina vai adiantar ou atrasar -e quanto. Já a ciência, mesmo com sua parafernália tecnológica, não é capaz de diagnóstico semelhante. É o preço que paga por trabalhar com um mecanismo infinitamente mais complexo.
Como o clima não pode ser simulado em laboratórios, estudá-lo é tarefa para supercomputadores que devoram trilhões de dados por segundo. Mas mesmo esses mastigadores vorazes de números não conseguem abocanhar por completo os fenômenos climáticos, já que são alimentados por modelos matemáticos. E, como o nome diz, eles são só modelos teóricos, simplificações da realidade com muitas limitações. Assim, o comportamento do clima está longe de ser traduzido em uma só fórmula.
Quando se tenta então entender a relação entre aquecimento global e as causas da subida das águas dos oceanos, a situação não se simplifica muito. Nem mesmo especialistas chegam a um consenso.
Em meio a várias hipóteses, pelo menos dois pontos de comum acordo parecem aflorar:
a) a comunidade científica concorda que a temperatura média da Terra sofreu um aumento, desde o século passado, entre 0,3 e 0,6 grau Celsius. Parece pouco, mas, para um mecanismo sensível a pequenas variações, esses décimos de grau causam desarranjo considerável na máquina climática
Boa parte desse aumento se deve ao acúmulo de dióxido de carbono (CO2) na atmosfera. Esse gás é emitido pela queima de derivados de petróleo e florestas, por exemplo. O CO2 age como isolante, impedindo que parte do calor do planeta escape para o espaço, o que gera aumento de temperatura;
b) O nível dos oceanos subiu entre 10 cm e 25 cm nos últimos cem anos, e muito disso foi causado pela elevação da temperatura média do planeta. Para entender o porquê, basta lembrar que a maioria das substâncias (e, em quase todas as temperaturas, a água não é exceção) dilata à medida que é aquecida. Como os oceanos estão presos na "panela" gigantesca dos continentes, não resta outra alternativa à água senão subir.

Cenários para 2100

O mais importante documento sobre clima é o relatório do IPCC (sigla, em inglês, para Painel Intergovernamental sobre Mudança Climática). Ele é consensual para a maioria dos pesquisadores e resume o que a ciência tem a dizer sobre clima neste final de século.
Na parte que relaciona aquecimento global e elevação do nível dos oceanos, o IPCC mostra três cenários. Todos baseados em modelos matemáticos, que a temperatura do planeta a partir das concentrações de CO2 ma atmosfera. Em 2100, se a quantidade de CO2 na atmosfera dobrar em relação à de hoje, a humanidade terá de enfrentar o seguinte:
a) uma elevação na temperatura global média de 1 grau Celsius, com a consequente elevação de 15 centímetros nos níveis da água. Aqui, até mesmo os que não acreditam em efeito estufa aceitam essa hipótese. E alegam que isso não seria nada trágico para a Terra, já que nos últimos cem anos o nível dos oceanos sofreu variação semelhante e a humanidade sobreviveu;
b) o aumento da temperatura média poderia bater na casa dos 2 graus Celsius. Aí o nível das águas subiria alarmantes 50 cm, o que já causaria problemas às cidades litorâneas e aos chamados países-ilhota do Pacífico. Haveria significativo aumento da erosão de zonas costeiras, principalmente durante eventos como tempestades e furacões, quando a força dos ventos faz o mar avançar sobre o continente;
c) o mais trágico dos cenários vislumbra uma subida de 3,5 graus a 4,5 graus e águas 1 metro mais altas. Nessa situação, a coisa ficaria realmente complicada. A maioria das cidades na Ásia, construídas em torno de deltas de rios, seria inundada, juntamente com partes costeiras de países como Argentina e EUA, por exemplo. A maioria das 300 ilhotas do Pacífico não teria destino melhor.
Mas vale lembrar que, nos últimos 40 anos, a concentração de CO2 aumentou só 13%, o que de certo modo torna fictícios os cenários do IPCC. Não há, por enquanto, provas concretas de que mesmo o menos calamitoso dos cenários deva ocorrer. São baseados em modelos teóricos, com uma gama considerável de "poréns".
Então, por ora, é melhor acreditar em fatos concretos: na média, as águas dos oceanos estão subindo de 1 a 2 milímetros por ano, taxa fornecida pelo satélite da Nasa Topex/Poseidon e encarada com seriedade por gente do setor. E, segundo especialistas, essa elevação não é nada assustadora. Dá para conviver com ela sem problemas -sem que, no final do próximo século, os banhistas, com as areias da praia submersas, tenham que fincar o guarda-sol no asfalto.



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