São Paulo, sábado, 18 de junho de 2005

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Um herói da ironia e do niilismo

Cervantes e Shakespeare criaram parte da personalidade humana, mas na era da informação e do terror o gênero cervantino pode estar tão obsoleto quanto o drama shakespeareano

HAROLD BLOOM
ESPECIAL PARA "THE NEW YORK TIMES"

Não existe uma resposta universal à chamada "pergunta da ilha deserta" ("se levasse apenas um livro, qual seria?"), mas a maioria dos leitores incessantes dotados de discernimento autêntico optaria entre três: a Bíblia na versão do rei James, a obra completa de Shakespeare e "Dom Quixote", de Miguel de Cervantes.
Será mero acaso que os três foram publicados quase à mesma época? A edição da Bíblia do rei James saiu em 1611, seis anos após a publicação da primeira parte de "Dom Quixote", em 1605. Neste mesmo ano, Shakespeare se equiparou à grandeza da obra-prima de Cervantes, com "Rei Lear", e logo após prosseguiu com "Macbeth" e "Antônio e Cleópatra".
Quando a pergunta da ilha deserta lhe foi feita, James Joyce deu uma resposta gloriosa: "Eu gostaria de dizer Dante, mas sou obrigado a optar pelo inglês, porque ele é mais fecundo". Percebe-se em sua resposta um certo ressentimento irlandês contra Shakespeare e também uma inveja pessoal do público de Shakespeare no [teatro] Globe, algo expresso no ainda não lido (exceto por estudiosos e alguns poucos entusiastas) "Finnegan's Wake".
A Bíblia é lida, Shakespeare é lido e encenado, mas Cervantes parece estar menos presente nos países de língua inglesa do que já esteve. Houve muitas boas traduções de "Dom Quixote" para o inglês desde a versão de Thomas Shelton em 1612, que Shakespeare evidentemente conhecia, mas a versão extraordinária de Edith Grossman, de 2003, merece ser lida por aqueles entre nós que não conseguimos facilmente absorver o espanhol de Cervantes.
Miguel de Cervantes (1547-1616) morreu na mesma data que Shakespeare (1564-1616) e, sem dúvida, nunca ouviu falar do inglês. Shakespeare teve uma vida tão insossa e rotineira que nenhuma biografia dele pode ser muito interessante. Cervantes, porém, levou uma vida violenta e difícil.
Mesmo um mero resumo dos fatos principais já soa como um roteiro de Hollywood. Os estudiosos discordam quanto a se Cervantes vinha de uma linhagem "cristã antiga" ou de uma família de "cristãos novos" -judeus convertidos ao catolicismo em 1492 para evitar serem expulsos do país. Para entrar para as forças armadas imperiais espanholas o candidato precisava jurar que era de sangue "imaculado", e Cervantes e seu irmão o fizeram, mas vale perguntar por que um herói que teve sua mão esquerda permanentemente mutilada na batalha naval de Lepanto, em 1571, nunca recebeu qualquer tratamento preferencial por parte do rei Felipe 2º, profundamente católico. Até sua velhice, que foi mais confortável graças à ajuda tardia de um mecenas nobre, a história pessoal de Cervantes é uma sucessão de provações. Depois de recuperar-se parcialmente do ferimento, Cervantes combateu em várias outras batalhas navais, até 1575, quando foi capturado pelos turcos e feito escravo na Argélia, tendo Felipe 2º se negado a pagar seu resgate.
Sua família e um monge amigo finalmente conseguiram resgatá-lo em 1580. Sem conseguir que Felipe 2º o empregasse, Cervantes iniciou uma carreira literária precária. Em desespero, tornou-se cobrador de impostos, sendo encarcerado em 1597, acusado de malversação de fundos.
Na prisão, começou a escrever "Dom Quixote", que concluiu em 1604 e publicou no ano seguinte, através de um editor que o trapaceou. O grande livro foi sensação instantânea, mas esse sucesso teve pouca repercussão imediata na satisfação das necessidades de Cervantes e sua família.
Em 1614 saiu uma segunda parte falsificada de "Dom Quixote", seguida em 1615 pela segunda parte verdadeira escrita por Cervantes. Um ano depois, o maior autor de todos os tempos na língua espanhola morreu e foi enterrado num túmulo sem lápide.
Lendo "Dom Quixote", estou longe de convencido de que os estudiosos para os quais o livro e seu autor são devotos tenham razão, mesmo porque eles deixam passar despercebida sua ironia, que em muitos momentos é grande demais para ser vista. O fato é que muitos acadêmicos também nos dizem que Shakespeare era católico, e eu, mais uma vez, estou longe de convencido disso, já que suas alusões mais importantes são feitas à Bíblia de Genebra, uma versão muito protestante.
Como as obras da fase posterior de Shakespeare, "Dom Quixote" me parece mais niilista do que cristão, e ambos esses grandes escritores do imaginário ocidental deixam entender que a aniquilação é o destino final da alma.
O que faz de "Dom Quixote" o único rival de Shakespeare na disputa pela glória estética maior? Cervantes é maravilhosamente cômico, como é Shakespeare, mas "Dom Quixote" não pode ser caracterizado como comédia, não mais do que se pode dizer que "Hamlet" o é. Boa parte de "Dom Quixote", assim como de Shakespeare, deve ser lida nas entrelinhas. Quando o amável Sancho Pança grita que ele próprio é cristão velho e odeia judeus, será que o sutil Cervantes quer que leiamos isso sem ironia? O contexto de "Dom Quixote" é a pobreza e a sujeira, exceto pelas casas dos nobres, que são redutos de racismo e zombaria onde Dom Quixote é sujeito a brincadeiras cruéis.
O romance de Cervantes (que inaugurou o gênero) é memorável por dois seres humanos belíssimos, Quixote e Sancho, e pela comunhão terna, embora irascível, entre eles. Não existe nenhuma relação humana desse tipo em Shakespeare, onde Falstaff é terno e o príncipe Hal é irascível e onde Hamlet possui apenas uma pessoa que o idolatra: Horácio.
Observei certa vez que, enquanto Shakespeare nos ensina a falar com nós mesmos, Cervantes nos ensina a falar uns com os outros. Embora Cervantes e Shakespeare construam realidades suficientemente amplas para conter a todos, a individualidade de Hamlet, em última análise, é indiferente a si mesma e aos outros, enquanto a singularidade do cavaleiro leva em conta a ela própria, Sancho e os necessitados de ajuda.
Como mestres da representação, tanto Shakespeare quanto Cervantes são vitalistas, e é por isso que Falstaff e Sancho Pança contam com a bênção de mais vida. Mas estes dois maiores entre os escritores modernos também são céticos, de modo que Hamlet e Dom Quixote são ironistas, mesmo quando se comportam como loucos. O gosto pela vida, a exuberância primária, é o gênio comum tanto ao pai do romance castelhano quanto ao poeta e dramaturgo inglês, superando qualquer escritor anterior ou posterior a eles, em qualquer língua.
Para Quixote e para Sancho, a liberdade é função da ordem do jogo, que é desinteressada e precária. O jogo do mundo, para Quixote, é uma visão purificada da cavalaria, o jogo dos cavaleiros errantes, das donzelas virtuosamente belas e necessitadas de ajuda, dos poderosos e vis feiticeiros, e também de gigantes, ogros e buscas idealizadas.
Dom Quixote é corajosamente louco e obsessivamente corajoso, mas ele não se auto-ilude. Ele sabe quem é, mas também quem pode ser, se assim o quiser. Quando um padre moralizador acusa o Cavaleiro de ausentar-se da realidade e ordena que ele volte para casa e deixe de perambular, Quixote responde que, realisticamente, como cavaleiro errante, já corrigiu malfeitos, castigou a arrogância e esmagou monstros diversos.
Por que a invenção do romance precisou esperar por Cervantes? Hoje, no século 21, o romance parece estar passando por uma morte prolongada. Nossos mestres contemporâneos -Thomas Pynchon, Philip Roth, José Saramago e outros- parecem forçados a retroceder para o picaresco e para a forma do romance anterior a Cervantes.
Shakespeare e Cervantes criaram boa parte da personalidade humana tal como a conhecemos, ou, pelo menos, as maneiras pelas quais a personalidade podia ser representada; o Poldy de Joyce, seu Ulisses judeu-irlandês, é ao mesmo tempo quixotesco e shakespeareano, mas Joyce morreu em 1941, antes que o Holocausto de Hitler pudesse ser integralmente conhecido. Em nossa atual era da informação e do terror, o romance cervantino pode estar tão obsoleto quanto o drama shakespeareano. Falo dos gêneros, não de seus mestres supremos, que nunca serão superados.


Harold Bloom é professor de literatura na Universidade Yale e autor de, entre outros, "O Cânone Ocidental" e "Shakespeare - A Invenção do Humano".
Tradução de Clara Allain


Texto Anterior: Na trilha de D. Quixote 3: Uma série de encontros memoráveis
Próximo Texto: O nascimento de uma palavra: "quixotesco"
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.