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Um herói da ironia e do niilismo
Cervantes e Shakespeare criaram parte da personalidade humana, mas na
era da informação e do terror o gênero cervantino pode estar tão obsoleto quanto o drama shakespeareano
HAROLD BLOOM
ESPECIAL PARA "THE NEW YORK TIMES"
Não existe uma resposta universal à chamada "pergunta da ilha
deserta" ("se levasse apenas um
livro, qual seria?"), mas a maioria
dos leitores incessantes dotados
de discernimento autêntico optaria entre três: a Bíblia na versão do
rei James, a obra completa de Shakespeare e "Dom Quixote", de
Miguel de Cervantes.
Será mero acaso que os três foram publicados quase à mesma
época? A edição da Bíblia do rei
James saiu em 1611, seis anos após
a publicação da primeira parte de
"Dom Quixote", em 1605. Neste
mesmo ano, Shakespeare se equiparou à grandeza da obra-prima
de Cervantes, com "Rei Lear", e
logo após prosseguiu com "Macbeth" e "Antônio e Cleópatra".
Quando a pergunta da ilha deserta lhe foi feita, James Joyce deu
uma resposta gloriosa: "Eu gostaria de dizer Dante, mas sou obrigado a optar pelo inglês, porque
ele é mais fecundo". Percebe-se
em sua resposta um certo ressentimento irlandês contra Shakespeare e também uma inveja pessoal do público de Shakespeare
no [teatro] Globe, algo expresso
no ainda não lido (exceto por estudiosos e alguns poucos entusiastas) "Finnegan's Wake".
A Bíblia é lida, Shakespeare é lido e encenado, mas Cervantes parece estar menos presente nos
países de língua inglesa do que já
esteve. Houve muitas boas traduções de "Dom Quixote" para o inglês desde a versão de Thomas
Shelton em 1612, que Shakespeare
evidentemente conhecia, mas a
versão extraordinária de Edith
Grossman, de 2003, merece ser lida por aqueles entre nós que não
conseguimos facilmente absorver
o espanhol de Cervantes.
Miguel de Cervantes (1547-1616) morreu na mesma data que
Shakespeare (1564-1616) e, sem
dúvida, nunca ouviu falar do inglês. Shakespeare teve uma vida
tão insossa e rotineira que nenhuma biografia dele pode ser muito
interessante. Cervantes, porém,
levou uma vida violenta e difícil.
Mesmo um mero resumo dos
fatos principais já soa como um
roteiro de Hollywood. Os estudiosos discordam quanto a se Cervantes vinha de uma linhagem
"cristã antiga" ou de uma família
de "cristãos novos" -judeus
convertidos ao catolicismo em
1492 para evitar serem expulsos
do país. Para entrar para as forças
armadas imperiais espanholas o
candidato precisava jurar que era
de sangue "imaculado", e Cervantes e seu irmão o fizeram, mas vale
perguntar por que um herói que
teve sua mão esquerda permanentemente mutilada na batalha
naval de Lepanto, em 1571, nunca
recebeu qualquer tratamento preferencial por parte do rei Felipe 2º,
profundamente católico. Até sua
velhice, que foi mais confortável
graças à ajuda tardia de um mecenas nobre, a história pessoal de
Cervantes é uma sucessão de provações. Depois de recuperar-se
parcialmente do ferimento, Cervantes combateu em várias outras
batalhas navais, até 1575, quando
foi capturado pelos turcos e feito
escravo na Argélia, tendo Felipe
2º se negado a pagar seu resgate.
Sua família e um monge amigo
finalmente conseguiram resgatá-lo em 1580. Sem conseguir que Felipe 2º o empregasse, Cervantes
iniciou uma carreira literária precária. Em desespero, tornou-se
cobrador de impostos, sendo encarcerado em 1597, acusado de
malversação de fundos.
Na prisão, começou a escrever
"Dom Quixote", que concluiu em
1604 e publicou no ano seguinte,
através de um editor que o trapaceou. O grande livro foi sensação
instantânea, mas esse sucesso teve
pouca repercussão imediata na
satisfação das necessidades de
Cervantes e sua família.
Em 1614 saiu uma segunda parte falsificada de "Dom Quixote",
seguida em 1615 pela segunda
parte verdadeira escrita por Cervantes. Um ano depois, o maior
autor de todos os tempos na língua espanhola morreu e foi enterrado num túmulo sem lápide.
Lendo "Dom Quixote", estou
longe de convencido de que os estudiosos para os quais o livro e
seu autor são devotos tenham razão, mesmo porque eles deixam
passar despercebida sua ironia,
que em muitos momentos é grande demais para ser vista. O fato é
que muitos acadêmicos também
nos dizem que Shakespeare era
católico, e eu, mais uma vez, estou
longe de convencido disso, já que
suas alusões mais importantes
são feitas à Bíblia de Genebra,
uma versão muito protestante.
Como as obras da fase posterior
de Shakespeare, "Dom Quixote"
me parece mais niilista do que
cristão, e ambos esses grandes escritores do imaginário ocidental
deixam entender que a aniquilação é o destino final da alma.
O que faz de "Dom Quixote" o
único rival de Shakespeare na disputa pela glória estética maior?
Cervantes é maravilhosamente
cômico, como é Shakespeare, mas
"Dom Quixote" não pode ser caracterizado como comédia, não
mais do que se pode dizer que
"Hamlet" o é. Boa parte de "Dom
Quixote", assim como de Shakespeare, deve ser lida nas entrelinhas. Quando o amável Sancho
Pança grita que ele próprio é cristão velho e odeia judeus, será que
o sutil Cervantes quer que leiamos isso sem ironia? O contexto
de "Dom Quixote" é a pobreza e a
sujeira, exceto pelas casas dos nobres, que são redutos de racismo e
zombaria onde Dom Quixote é
sujeito a brincadeiras cruéis.
O romance de Cervantes (que
inaugurou o gênero) é memorável por dois seres humanos belíssimos, Quixote e Sancho, e pela
comunhão terna, embora irascível, entre eles. Não existe nenhuma relação humana desse tipo em
Shakespeare, onde Falstaff é terno
e o príncipe Hal é irascível e onde
Hamlet possui apenas uma pessoa que o idolatra: Horácio.
Observei certa vez que, enquanto Shakespeare nos ensina a falar
com nós mesmos, Cervantes nos
ensina a falar uns com os outros.
Embora Cervantes e Shakespeare
construam realidades suficientemente amplas para conter a todos, a individualidade de Hamlet,
em última análise, é indiferente a
si mesma e aos outros, enquanto
a singularidade do cavaleiro leva
em conta a ela própria, Sancho e
os necessitados de ajuda.
Como mestres da representação, tanto Shakespeare quanto
Cervantes são vitalistas, e é por isso que Falstaff e Sancho Pança
contam com a bênção de mais vida. Mas estes dois maiores entre
os escritores modernos também
são céticos, de modo que Hamlet
e Dom Quixote são ironistas,
mesmo quando se comportam
como loucos. O gosto pela vida, a
exuberância primária, é o gênio
comum tanto ao pai do romance
castelhano quanto ao poeta e dramaturgo inglês, superando qualquer escritor anterior ou posterior a eles, em qualquer língua.
Para Quixote e para Sancho, a liberdade é função da ordem do jogo, que é desinteressada e precária. O jogo do mundo, para Quixote, é uma visão purificada da
cavalaria, o jogo dos cavaleiros errantes, das donzelas virtuosamente belas e necessitadas de ajuda, dos poderosos e vis feiticeiros,
e também de gigantes, ogros e
buscas idealizadas.
Dom Quixote é corajosamente
louco e obsessivamente corajoso,
mas ele não se auto-ilude. Ele sabe
quem é, mas também quem pode
ser, se assim o quiser. Quando um
padre moralizador acusa o Cavaleiro de ausentar-se da realidade e
ordena que ele volte para casa e
deixe de perambular, Quixote
responde que, realisticamente,
como cavaleiro errante, já corrigiu malfeitos, castigou a arrogância e esmagou monstros diversos.
Por que a invenção do romance
precisou esperar por Cervantes?
Hoje, no século 21, o romance parece estar passando por uma
morte prolongada. Nossos mestres contemporâneos -Thomas
Pynchon, Philip Roth, José Saramago e outros- parecem forçados a retroceder para o picaresco
e para a forma do romance anterior a Cervantes.
Shakespeare e Cervantes criaram boa parte da personalidade
humana tal como a conhecemos,
ou, pelo menos, as maneiras pelas
quais a personalidade podia ser
representada; o Poldy de Joyce,
seu Ulisses judeu-irlandês, é ao
mesmo tempo quixotesco e shakespeareano, mas Joyce morreu
em 1941, antes que o Holocausto
de Hitler pudesse ser integralmente conhecido. Em nossa atual
era da informação e do terror, o
romance cervantino pode estar
tão obsoleto quanto o drama shakespeareano. Falo dos gêneros,
não de seus mestres supremos,
que nunca serão superados.
Harold Bloom é professor de literatura
na Universidade Yale e autor de, entre
outros, "O Cânone Ocidental" e "Shakespeare - A Invenção do Humano".
Tradução de Clara Allain
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