São Paulo, sábado, 18 de junho de 2005 |
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Quixote, Sancho e o transtorno da Ordem
Cervantes condensa e atrai a sátira
das instituições vigentes da sua época; a extrema habilidade do autor
consiste em fazê-la passar como se tratasse de alguma coisa inocente
Em que consistia ele? A ordem, de que o cavaleiro do prólogo servirá de introdutor, supunha que a injustiça empolgara o mundo e aquele que for armado cavaleiro terá sido eleito como "o mais amável" entre milhares. Sua escolha se estende ao animal que o servirá, o cavalo, "o bruto mais nobre para servir o homem". O eleito, nunca uma mulher, por não ter "um nobre coração", há de ser tratado como senhor, com direito a escudeiro para servi-lo e gentes que "arem, cavem e limpem a terra de ervas daninhas". Sua entrada na Ordem é hereditária, devendo ensinar os princípios da cavalaria a seu filho, que também há de aprender a montar. É tarefa dos membros da Ordem: manter a fé e lutar pela conversão dos infiéis, como fizera o próprio Llull com os mouros. Por isso, dos ofícios concedidos aos homens, os de clérigo e cavaleiro são, dizia o pregador catalão, os mais nobres, honrados e próximos. A Ordem portanto participa de uma sociedade hierárquica, que começa com Deus, o imperador, vindo aos reis e seus servidores de escol, sob os quais só então se nomeiam "os cavaleiros de um escudo". Embora Llull se empenhasse pela reforma da Igreja, a Ordem idealizada não sofria embargos entre os religiosos porque mantinha intacta sua posição entre os poderes constituídos, apenas retirando seu impuro grão terreno. Por seu duplo caráter de mantenedor do estabelecido e fator de limpeza ética, confiava ao cavaleiro "manter a justiça", "guardar a terra de seu príncipe", "favorecer viúvas, órfãos e desvalidos", "defender os lavradores", "manter vilas e cidades". Em suma, a Ordem era uma aristocracia do corpo e do espírito, a idealização da elite que dominava o Ocidente dos primeiros séculos feudais. Do muito que ainda deveria referir, basta assinalar que, para ingressar na Ordem, o candidato devia haver-se confessado, estar em jejum, "ir à igreja e velar" e ser armado por quem já fosse cavaleiro. Em troca de seus serviços, deverá ser respeitado pelas gentes, o povão e os de cima. Como aí nada se diz sobre sua amada, tema saliente em Chrétien e seus descendentes e igualmente parodiado no "Quixote", há de se entender que ele é independente do tratado de Llull. Como já se disse, por sua data de composição, não se há de supor que o livro de Llull fosse o originador da idealização do cavaleiro. Mas suas traduções indicam que cumpria uma função tida por necessária desde a França até a Inglaterra. É possível entendê-la, tal como a realiza os "Erec et Enide" e os "Lancelot" de Chrétien, como "desafio e reação" (Jacques Le Goff). Desafio da pequena e média nobreza aos privilégios da aristocracia, fechada em seus feudos, com suas riquezas e suas mulheres; reação quanto à alta nobreza, melhor preparada para participar do crescimento da economia monetária, do surgimento das cidades, do poder crescente do príncipe. Se isso é bem claro nos romances de Chrétien, a paródia cervantina supõe algo bastante diverso: o desengano na eficácia de tal desafio e reação. Pois, com o "Quixote", a literatura dos tempos modernos já nasce contra a corrente dentro da qual o Ocidente se complexifica. Mas vamos muito depressa. Entre o livro de Llull e o máximo romance cervantino medeiam mais de três séculos; socialmente, o ideal do cavaleiro fora substituído pelo do "corteggiano" e, na Espanha, já se fazia sentir o afluxo de riquezas advindo da exploração da América, centralizadas na casa real e sua corte. As mudanças temporais impediam que o livro de Llull servisse diretamente ao "Quixote". Mas por isso mesmo sua paródia é viável. Embora ela saliente no primeiro livro (1605), seu cume se dará no capítulo 33 do segundo livro (1615). Procuro apenas mostrá-lo. Longe das amenidades e da consideração que cercavam o cavaleiro de Llull, Quixote é um fidalgo sem função e de mínima renda. Dizem-no as roupas de que se veste, sua dieta, as armas que improvisa e o esquálido Rocinante. O seu vício de leitura, além de afastá-lo dos hábitos da fidalguia e de não ser bem visto pelas normas postas em vigor pelo Concílio de Trento (1545-1563), o perdera para o sentido da realidade. Em sua burla da Ordem de Cavalaria, Cervantes condensa e atrai a sátira das instituições vigentes. Sua extrema habilidade consiste em fazê-la passar como se tratasse de algo inocente: as loucuras de alguém que crê em algo que ninguém pratica. Assim se mostra na própria cena em que é armado cavaleiro. O estalajadeiro finge-se de castelão e, nomeando os lugares em que realizara suas proezas, refere "barrios de la mala vida" (Francisco Rico). A sátira é bifronte: atacando as práticas literárias, questiona a gravidade contra-reformista; ambas deixam intacto o anônimo cotidiano, de cujo núcleo sequer se dão conta. Pela sátira de ambas, introduz-se o prosaico cotidiano, cuja tematização ganha em eficácia a partir da entrada de Sancho. O mundo é visto a partir de uma dupla ótica. O contraste das visões do Cavaleiro da Triste Figura, magro e visionário, e o lavrador, farto de banhas e pobre de haveres, palmilha as múltiplas cenas do mundo. A Ordem de Cavalaria pretendera emendá-lo. Fiel a seu preceito, o Quixote desmancha malfeitos, contraria a lei ao soltar condenados às galés, converte moinhos em gigantes, é objeto de escárnio, sai moído das contendas e estimula a ambição de Sancho. O Quixote, "sepultado en (...) sus amores", e Sancho, que só pensa em "su acrecentamiento", são os respectivos descendentes do santo cavaleiro de Llull e das gentes que deveriam servi-lo. Sancho, conquanto fiel a seu senhor e conivente com suas loucuras, guarda o senso de realidade: a realidade é rude e ignorante como ele, embora desconheça sua boa-fé. Por isso, ao passo que todos reconhecem o desvario do Quixote, Sancho chega a pôr em dúvida as certezas que todos acatam. Assim sucede quando a burla da Ordem de Cavalaria atinge seu cume, com o divertimento que planejam o duque e a duquesa, no segundo livro: fingem cumprir o sonho de Sancho, tornando-o por alguns dias governador da ínsula da Barataria; e o do Quixote, desencantando uma Dulcinéia que só ele mesmo encantara. Ao longo da ficção encenada ao ar livre, que começa com a "caza de montería", privilégio da nobreza, o personagem que deveria representar o demônio se distrai e comete o engano de invocar o nome de Deus. Em seu prosaico bom senso, Sancho conclui que aquele demônio só podia ser um bom cristão: "Agora tenho para mim que ainda no mesmo inferno deve haver boa gente". Não sabe ele que assim abala toda a ordem do mundo. Sob a burla do Quixote e o contraponto do fiel escudeiro, o mundo codificado se põe de pernas pro ar. Como estranhar que, depois de Cervantes, o romance não prospere na Espanha contra-reformista? Uma pequena entrada na regra estabelecida em Trento explica o que pareceria enigmático ou ocasional. Sob o comando sobretudo de teólogos espanhóis, a Igreja tridentina, disposta a combater a praga protestante, considerara o livre arbítrio o princípio que deveria reger o Estado cristão. No entanto, como bem assinala Joan Ramón Resina, a afirmação doutrinária supunha, na prática, o oposto do exercício da liberdade de ação. "Se a vontade é livre", escreve Resina, "os indivíduos hão de ser protegidos de seus caprichos. Deste modo, a crença na liberdade subjetiva levava à mais estrita vigilância das almas". Ora, como o romance, que explorava os interstícios do cotidiano, a ação empreendida por aqueles que não se contentavam com o estado em que haviam nascido, podia ser benquisto aos mecanismos contra-reformistas de controle? Entre o "Quixote" e a afirmação do gênero romanesco deverão se passar dois séculos; é o tempo para que o romance se adapte noutra parte, a Inglaterra, onde seu questionamento não se choca de cara com uma ordem social que, embora sob tensão, devia favorecer a iniciativa individual. Só através da complicada negociação com a ordem burguesa, que o obriga a distinguir-se do relato de viagem e pretende subordiná-lo à história de fatos verídicos, o romance conseguiu retomar o questionamento oblíquo, aparentemente inocente, que seu inaugurador antecipara. Luiz Costa Lima é ensaísta, crítico e professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e da Pontifícia Universidade Católica (PUC-RJ). É autor de "O Redemoinho do Horror" (ed. Planeta) e "Intervenções" (Edusp), entre outros. Texto Anterior: Na trilha de D. Quixote 4: Umas piruetas com a natureza à mostra Próximo Texto: O quarteto fantástico - Dom Quixote: Um herói feito de livros Índice |
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