São Paulo, sábado, 18 de junho de 2005

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O QUARTETO FANTÁSTICO

Quixote, Sancho Pança, Dulcinéia e o cavalo Rocinante saltaram das páginas do clássico de Cervantes para a condição de mitos da cultura ocidental

DOM QUIXOTE

O fidalgo Alonso Quijano não se contenta em ler romances, mas transforma a vida no maior deles

Um herói feito de livros

RUBENS RICUPERO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Ao ler o "Quixote" no terraço ensolarado de minha casa na espanholíssima Quito dos anos 60, surpreendi-me com a extrema legibilidade do livro. Temia um desses clássicos que fazem sofrer e encontrei texto saboroso, mistura de cômico e amargo, preenchendo a primeira das condições exigidas por José Mindlin para qualquer leitura: que dê prazer.
Não é à toa que, em 2002, um júri de 50 grandes escritores escolheu o "Quixote" como "a maior obra de ficção de todos os tempos". Ele é o protótipo do romance moderno. Não só porque sua atenção ao cotidiano e o realismo cru da vida popular que o anima não deixam espaço para o prodigioso, que só existem na imaginação do herói desvairado. A modernidade deriva também do tema: um leitor que toma a fantasia literária por realidade, a leitura de ficção conduzindo à loucura.
"Ficaste louco, Paulo, as muitas letras te fazem delirar", a censura do governador Festus ao apóstolo é a mesma que dirige Cervantes aos livros de cavalaria. Para comprá-los e lê-los, o modesto fidalgo Alonso Quijano abandona tudo, vende terras, enlouquece e se reinventa como Dom Quixote, "homem feito de livros, de fábulas, de fantasmas", na definição do crítico italiano Berardinelli.
Na França do século 19, a idéia reaparece em "Madame Bovary", mas havia sido antecipada por Stendhal: "A ocupação das mulheres de província é ler romances... não podendo fazer romances de suas vidas, se consolam lendo-os". Só que Quijano não se contenta em ler romances, mas transforma a vida no maior deles.
O personagem no qual se converte suscitará centenas de interpretações, todas contidas nos três tipos essenciais já esboçados por Sancho Pança, quando diz ao amo quais eram as opiniões da aldeia a respeito dele: "Unos dicen: "Loco, pero gracioso'; otros: "Valiente, pero desgraciado'; otros: "Cortés, pero impertinente'".
A primeira prevaleceu no início e coincidia com a intenção declarada do autor no sentido de ridicularizar os romances de cavalaria. Os leitores riam do herói, como faziam os demais figurantes da trama. Veio depois o mito romântico do paladino do idealismo, vítima do desalmado materialismo do mundo. O leitor passava da mofa às lágrimas e se comovia com a sorte do Cavaleiro. A terceira é a dos que buscam, das vicissitudes do protagonista, extrair uma lição moral.
Das leituras recentes, a de Berardinelli acentua o irremediável desencontro do herói em relação a um mundo que não compreende e ao qual desafia. Essa incompatibilidade produz uma série interminável de mal-entendidos e confusões. A comicidade é estrutural e onipresente porque nasce da separação radical entre personagem extraordinário e ambiente social ordinário ao extremo. É a dissonância e a alteridade que permitem revelar a diferença entre a contundente e banal realidade do mundo presente e o mundo ideal da cavalaria, em certo sentido mais "verdadeiro" que o real.
Entre os dois, o autor não escolhe, enigmaticamente escondido atrás de sua superioridade irônica. Insinua, porém, que sua simpatia vai para o Cavaleiro da Triste Figura. Impermeável a dúvidas e vacilações, este não possui a rigor subjetividade, é todo exterioridade voltada à ação. Ninguém é mais diferente de seu contemporâneo Hamlet, roído por dúvidas existenciais, habitado por interioridade cética e interrogante.
A loucura de Hamlet tinha certo método, a do Quixote não tem nenhum. Aliás, é ele mesmo quem o diz, ao reagir à observação de Sancho de que Orlando e Amadis tinham tido, na traição de suas damas, motivos para fazer loucuras: "Pero vuestra merced, que causa tiene para volverse loco?". "Ahi está el punto y ésa es la fineza de mi negocio", responde o herói. Un cavaleiro andante ficar louco com causa não merece agradecimento... "el toque está desatinar sin ocasión y dar a entender a mi dama que, si en seco hago esto, qué hiciera en mojado?".
No fim, a loucura perde e a realidade se impõe. O fidalgo recupera a razão, arrepende-se de seus desatinos, mas, privado do sonho, morre de melancolia. Foi devido a essa derrota da fantasia e da nobreza de alma que Dostoiévski chamou a obra de Cervantes de "o mais triste dos livros", julgando, no entanto, que, por si só, ela era suficiente para justificar a humanidade aos olhos de Deus.
Muito antes dos surrealistas, Dom Quixote compreendeu que não basta mudar de vida: é preciso mudar a própria vida. Ao menos, é preciso tentar sempre, sob pena de que, sem a fantasia de transfigurar o mundo, a vida não mereça ser vivida e acabe por nos matar de tristeza ou de tédio.


Rubens Ricupero é diretor da Faculdade de Economia da Faap. Ele foi ministro da Fazenda (governo Itamar Franco).


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