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O QUARTETO FANTÁSTICO
Quixote, Sancho Pança, Dulcinéia e o cavalo Rocinante saltaram das páginas do clássico de Cervantes para a condição de mitos da cultura ocidental
DOM QUIXOTE
O fidalgo Alonso Quijano não se contenta em ler
romances, mas transforma a vida no maior deles
Um herói feito de livros
RUBENS RICUPERO
ESPECIAL PARA A FOLHA
Ao ler o "Quixote" no terraço
ensolarado de minha casa na espanholíssima Quito dos anos 60,
surpreendi-me com a extrema legibilidade do livro. Temia um
desses clássicos que fazem sofrer e
encontrei texto saboroso, mistura
de cômico e amargo, preenchendo a primeira das condições exigidas por José Mindlin para qualquer leitura: que dê prazer.
Não é à toa que, em 2002, um júri de 50 grandes escritores escolheu o "Quixote" como "a maior
obra de ficção de todos os tempos". Ele é o protótipo do romance moderno. Não só porque sua
atenção ao cotidiano e o realismo
cru da vida popular que o anima
não deixam espaço para o prodigioso, que só existem na imaginação do herói desvairado. A modernidade deriva também do tema: um leitor que toma a fantasia
literária por realidade, a leitura de
ficção conduzindo à loucura.
"Ficaste louco, Paulo, as muitas
letras te fazem delirar", a censura
do governador Festus ao apóstolo
é a mesma que dirige Cervantes
aos livros de cavalaria. Para comprá-los e lê-los, o modesto fidalgo
Alonso Quijano abandona tudo,
vende terras, enlouquece e se
reinventa como Dom Quixote,
"homem feito de livros, de fábulas, de fantasmas", na definição
do crítico italiano Berardinelli.
Na França do século 19, a idéia
reaparece em "Madame Bovary",
mas havia sido antecipada por
Stendhal: "A ocupação das mulheres de província é ler romances... não podendo fazer romances de suas vidas, se consolam lendo-os". Só que Quijano não se
contenta em ler romances, mas
transforma a vida no maior deles.
O personagem no qual se converte suscitará centenas de interpretações, todas contidas nos três
tipos essenciais já esboçados por
Sancho Pança, quando diz ao
amo quais eram as opiniões da aldeia a respeito dele: "Unos dicen:
"Loco, pero gracioso'; otros: "Valiente, pero desgraciado'; otros:
"Cortés, pero impertinente'".
A primeira prevaleceu no início
e coincidia com a intenção declarada do autor no sentido de ridicularizar os romances de cavalaria. Os leitores riam do herói, como faziam os demais figurantes
da trama. Veio depois o mito romântico do paladino do idealismo, vítima do desalmado materialismo do mundo. O leitor passava da mofa às lágrimas e se comovia com a sorte do Cavaleiro. A
terceira é a dos que buscam, das
vicissitudes do protagonista, extrair uma lição moral.
Das leituras recentes, a de Berardinelli acentua o irremediável
desencontro do herói em relação
a um mundo que não compreende e ao qual desafia. Essa incompatibilidade produz uma série interminável de mal-entendidos e
confusões. A comicidade é estrutural e onipresente porque nasce
da separação radical entre personagem extraordinário e ambiente
social ordinário ao extremo. É a
dissonância e a alteridade que
permitem revelar a diferença entre a contundente e banal realidade do mundo presente e o mundo
ideal da cavalaria, em certo sentido mais "verdadeiro" que o real.
Entre os dois, o autor não escolhe, enigmaticamente escondido
atrás de sua superioridade irônica. Insinua, porém, que sua simpatia vai para o Cavaleiro da Triste Figura. Impermeável a dúvidas
e vacilações, este não possui a rigor subjetividade, é todo exterioridade voltada à ação. Ninguém é
mais diferente de seu contemporâneo Hamlet, roído por dúvidas
existenciais, habitado por interioridade cética e interrogante.
A loucura de Hamlet tinha certo
método, a do Quixote não tem nenhum. Aliás, é ele mesmo quem o
diz, ao reagir à observação de Sancho de que Orlando e Amadis tinham tido, na traição de suas damas, motivos para fazer loucuras:
"Pero vuestra merced, que causa
tiene para volverse loco?". "Ahi
está el punto y ésa es la fineza de
mi negocio", responde o herói.
Un cavaleiro andante ficar louco
com causa não merece agradecimento... "el toque está desatinar
sin ocasión y dar a entender a mi
dama que, si en seco hago esto,
qué hiciera en mojado?".
No fim, a loucura perde e a realidade se impõe. O fidalgo recupera
a razão, arrepende-se de seus desatinos, mas, privado do sonho,
morre de melancolia. Foi devido a
essa derrota da fantasia e da nobreza de alma que Dostoiévski
chamou a obra de Cervantes de "o
mais triste dos livros", julgando,
no entanto, que, por si só, ela era
suficiente para justificar a humanidade aos olhos de Deus.
Muito antes dos surrealistas,
Dom Quixote compreendeu que
não basta mudar de vida: é preciso mudar a própria vida. Ao menos, é preciso tentar sempre, sob
pena de que, sem a fantasia de
transfigurar o mundo, a vida não
mereça ser vivida e acabe por nos
matar de tristeza ou de tédio.
Rubens Ricupero é diretor da Faculdade de Economia da Faap. Ele foi ministro
da Fazenda (governo Itamar Franco).
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