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DULCINÉIA
A principal personagem feminina do livro é um
caso raro de protagonista "sem história"
A musa inconsútil
WALNICE NOGUEIRA GALVÃO
ESPECIAL PARA A FOLHA
Regido pela alternância elevação/rebaixamento da narrativa,
Alonso Quijano, na panóplia das
coisas indispensáveis para alicerçar a investidura de um cavaleiro
andante, mobiliza algumas. Desenferrujadas e reparadas as armas, é preciso um corcel e um cavalo de pobre rendimento, um rocim, torna-se Rocinante. Uma bacia de barbeiro vira elmo. Cata-se
um escudeiro e ali está Sancho
Pança, gordo, poltrão e pragmático. E Alonso passa a Dom Quixote
de la Mancha. Enfim, mais remota e menos utilitária, falta uma dama, que lhe sirva de musa inspiradora, a cujos pés o Cavaleiro possa depor suas proezas.
Uma lavradora dos arredores,
Aldonça Lourenço, é escolhida e
renominada pelo Quixote como
Dulcinéia del Toboso, e o texto
tem o cuidado de sublinhar a ressonância fonêmica quase anagramática entre ambos os prenomes.
Entre Alonso Quijano e o universo ilusório para o qual o desvario o transporta, posta-se a literatura: objeto de libelo porque
enlouquece o herói, de glória porque reconhece-lhe o condão de
transfigurar o mundo.
Em Dulcinéia temos em mãos
um caso raro de protagonista
"sem história". Ela é sem dúvida a
principal personagem feminina
do livro, enquanto amada do herói. Mas como Aldonça é definida
pela condição rústica e Dulcinéia
pela mirabolante promoção a grã-senhora, tal procedimento fixa
para sempre o que são, dispensando o trabalho, primordial em
qualquer romance, de caracterização das personagens. Prescindem ambas de corpo, alma, traços
físicos ou psicológicos. Assim
sendo, Dulcinéia fica engessada e
imutável em sua parcimônia, servindo, por isso mesmo, de tela em
branco para projeções do leitor.
Outras mulheres comparecem,
mas nem Altisidora, Dorotéia ou
Belerma, nem as pastoras conseguem demover D. Quixote. Rendendo homenagem aos atrativos
delas, a todas proclama Dulcinéia
superior em formosura e brio.
No episódio da Cova de Montesinos, passagem para o outro
mundo em que o Cavaleiro desce
amarrado por cordas seguras por
Sancho, os circunstantes, para
mistificar um vislumbre que D.
Quixote teve de Aldonça, dizem
que ela fora enfeitiçada, e que
aguardava ser desencantada para
regressar a sua condição normal
de Dulcinéia. Adensa-se a trama:
Aldonça, que se metamorfoseara
em Dulcinéia na fantasia do Quixote, só volta a ser Aldonça devido à obra de bruxaria. Os outros
não eram capazes de vê-la como
Dulcinéia, só ele: haverá mais adequada metáfora do amor?
Ambas, Dulcinéia e Aldonça,
subsistem em níveis literários que
se excluem, a primeira pertencendo ao exaltado mundo da imaginação, a segunda à empiria do comum dos mortais, que o Cavaleiro da Triste Figura desdenha. Aldonça é criação de Cervantes, mas
Dulcinéia é, além de criação de
Cervantes, criação de D. Quixote.
Paródia da novela de cavalaria,
porta-voz da burguesia ascendendo rumo ao poder, "Dom Quixote" critica tanto a classe que intenta apear quanto a literatura que a
expressa. A novela de cavalaria,
enaltecendo a honra, a glória, os
feitos da nobreza, causou a insanidade de Alonso Quijano: este livro é sua carnavalização e espelho
duplamente invertido.
Já se notou a fixação dos hispânicos pelo "Quixote", alvo de veneração apesar de ser uma sátira,
contrariando as epopéias nacionais, que costumam ser solenes.
Jorge Luis Borges não escapou à
sina, e "Pierre Menard, Autor do
Quixote", mesmo com o nome
francês, é seu melhor preito: que
outro livro compensaria a porfia
sem galardão de ser reescrito palavra por palavra?
Borges dedicou muitos escritos
ao livro e ao autor, tematizando-os em vários poemas. Os paradoxos destes versos são do soneto
"Sueña Alonso Quijano":
"El hidalgo fué um sueño de
Cervantes
y Don Quijote um sueño del hidalgo".
De modo similar, Dulcinéia é
um sonho de Dom Quixote.
Walnice Nogueira Galvão é professora
titular de literatura na USP e autora de,
entre outros livros, "No Calor da Hora"
(Ática) e "Guimarães Rosa" (Publifolha).
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