São Paulo, sábado, 18 de junho de 2005

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DULCINÉIA

A principal personagem feminina do livro é um caso raro de protagonista "sem história"

A musa inconsútil

WALNICE NOGUEIRA GALVÃO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Regido pela alternância elevação/rebaixamento da narrativa, Alonso Quijano, na panóplia das coisas indispensáveis para alicerçar a investidura de um cavaleiro andante, mobiliza algumas. Desenferrujadas e reparadas as armas, é preciso um corcel e um cavalo de pobre rendimento, um rocim, torna-se Rocinante. Uma bacia de barbeiro vira elmo. Cata-se um escudeiro e ali está Sancho Pança, gordo, poltrão e pragmático. E Alonso passa a Dom Quixote de la Mancha. Enfim, mais remota e menos utilitária, falta uma dama, que lhe sirva de musa inspiradora, a cujos pés o Cavaleiro possa depor suas proezas.
Uma lavradora dos arredores, Aldonça Lourenço, é escolhida e renominada pelo Quixote como Dulcinéia del Toboso, e o texto tem o cuidado de sublinhar a ressonância fonêmica quase anagramática entre ambos os prenomes.
Entre Alonso Quijano e o universo ilusório para o qual o desvario o transporta, posta-se a literatura: objeto de libelo porque enlouquece o herói, de glória porque reconhece-lhe o condão de transfigurar o mundo.
Em Dulcinéia temos em mãos um caso raro de protagonista "sem história". Ela é sem dúvida a principal personagem feminina do livro, enquanto amada do herói. Mas como Aldonça é definida pela condição rústica e Dulcinéia pela mirabolante promoção a grã-senhora, tal procedimento fixa para sempre o que são, dispensando o trabalho, primordial em qualquer romance, de caracterização das personagens. Prescindem ambas de corpo, alma, traços físicos ou psicológicos. Assim sendo, Dulcinéia fica engessada e imutável em sua parcimônia, servindo, por isso mesmo, de tela em branco para projeções do leitor.
Outras mulheres comparecem, mas nem Altisidora, Dorotéia ou Belerma, nem as pastoras conseguem demover D. Quixote. Rendendo homenagem aos atrativos delas, a todas proclama Dulcinéia superior em formosura e brio.
No episódio da Cova de Montesinos, passagem para o outro mundo em que o Cavaleiro desce amarrado por cordas seguras por Sancho, os circunstantes, para mistificar um vislumbre que D. Quixote teve de Aldonça, dizem que ela fora enfeitiçada, e que aguardava ser desencantada para regressar a sua condição normal de Dulcinéia. Adensa-se a trama: Aldonça, que se metamorfoseara em Dulcinéia na fantasia do Quixote, só volta a ser Aldonça devido à obra de bruxaria. Os outros não eram capazes de vê-la como Dulcinéia, só ele: haverá mais adequada metáfora do amor?
Ambas, Dulcinéia e Aldonça, subsistem em níveis literários que se excluem, a primeira pertencendo ao exaltado mundo da imaginação, a segunda à empiria do comum dos mortais, que o Cavaleiro da Triste Figura desdenha. Aldonça é criação de Cervantes, mas Dulcinéia é, além de criação de Cervantes, criação de D. Quixote.
Paródia da novela de cavalaria, porta-voz da burguesia ascendendo rumo ao poder, "Dom Quixote" critica tanto a classe que intenta apear quanto a literatura que a expressa. A novela de cavalaria, enaltecendo a honra, a glória, os feitos da nobreza, causou a insanidade de Alonso Quijano: este livro é sua carnavalização e espelho duplamente invertido.
Já se notou a fixação dos hispânicos pelo "Quixote", alvo de veneração apesar de ser uma sátira, contrariando as epopéias nacionais, que costumam ser solenes. Jorge Luis Borges não escapou à sina, e "Pierre Menard, Autor do Quixote", mesmo com o nome francês, é seu melhor preito: que outro livro compensaria a porfia sem galardão de ser reescrito palavra por palavra?
Borges dedicou muitos escritos ao livro e ao autor, tematizando-os em vários poemas. Os paradoxos destes versos são do soneto "Sueña Alonso Quijano":
"El hidalgo fué um sueño de Cervantes
y Don Quijote um sueño del hidalgo".
De modo similar, Dulcinéia é um sonho de Dom Quixote.


Walnice Nogueira Galvão é professora titular de literatura na USP e autora de, entre outros livros, "No Calor da Hora" (Ática) e "Guimarães Rosa" (Publifolha).


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