São Paulo, quarta-feira, 19 de setembro de 2001

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

SITUAÇÃO

'Afeganistão enfrenta catástrofe'

Saída de organizações humanitárias piora situação, diz chefe da Médicos Sem Fronteiras

Reuters
Crianças afegãs ficam em carrinho de mão enquanto sua família pede esmola em estrada próxima à cidade de Peshawar (Paquistão)


PAULO DANIEL FARAH
DA REDAÇÃO

O Afeganistão vive hoje uma "catástrofe humana", e a saída das organizações humanitárias após os atentados nos EUA vai piorar ainda mais a situação. O país enfrenta a pior seca dos últimos 30 anos, que agravou a falta de alimentos, e a ONU estima que mais de 1 milhão de pessoas possa morrer nos próximos meses. A afirmação é do belga Stephan Goedgebuur, chefe da organização humanitária MSF (Médicos Sem Fronteiras) no Afeganistão.
Goedgebuur deixou o país no último domingo e está no Turcomenistão, de onde falou à Folha.
A MSF, Prêmio Nobel da Paz em 1999, atua no Afeganistão desde 1980. Contava com 68 integrantes estrangeiros e 406 afegãos antes da crise. Atualmente, "há no máximo dez integrantes na região controlada pela Aliança do Norte", diz Goedgebuur.
A seguir, trechos da entrevista.

Folha - Todos os membros da MSF deixaram o Afeganistão?
Stephan Goedgebuur
- Há apenas alguns poucos médicos na região controlada pela Aliança do Norte, no máximo dez pessoas.

Folha - Vocês foram obrigados a deixar o país?
Goedgebuur
- Nós decidimos sair. Aparentemente o Taleban disse aos estrangeiros que deixassem o país, mas nós fomos embora por decisão própria. Até onde sei, todos os estrangeiros, incluindo os que atuavam em agências humanitárias, deixaram toda a região controlada pelo Taleban.

Folha - O que mudou após os atentados na Costa Leste dos EUA?
Goedgebuur
- A pressão aumentou muito logo após o anúncio do que havia acontecido. Houve muita pressão sobre a organização e seus membros. Tomamos a decisão já na sexta-feira à noite. Concretamente, o que mais nos afetou foi o temor da reação internacional. Ficamos chocados, com angústia e um certo medo.

Folha - Quantas pessoas tinham acesso aos serviços da MSF?
Goedgebuur
- Cerca de 45 mil pessoas por mês. Tínhamos mais de 20 clínicas no país com programas especiais de vacinação, além de centros de distribuição de comida. Há uma séria crise de desnutrição e pouca água potável no Afeganistão. A seca, a pior dos últimos 30 anos, só piora isso.

Folha - Como fica a situação após a saída das agências humanitárias? Como as pessoas vão ter acesso a tratamento agora?
Goedgebuur
- A situação já era dramática antes dos atentados. Há uma catástrofe humana. Com certeza, a saída dos agentes humanitários só complica as coisas. Evidentemente, a qualidade e a quantidade do serviço a que a população tem acesso vai decair muito. Precisamos de ajuda. A MSF quer manter suas atividades a distância, vamos tentar de alguma maneira. É importante entender que, antes de nossa retirada, a situação já era extremamente preocupante. O que há hoje é um desastre humano no país.

Folha - Quais os principais problemas que afetam o país?
Goedgebuur
- O problema principal atualmente são os refugiados internos, pessoas que tiveram de abandonar suas casas para fugir da seca e dos confrontos. A princípio, elas se instalaram de maneira absolutamente provisória em campos ao redor de grandes cidades. Há centenas de milhares de pessoas deslocadas internamente. Há um problema de saúde grave, ligado especialmente à desnutrição e à falta de abrigo. Há ainda o inverno, extremamente rigoroso, que chega daqui a poucas semanas.

Folha - Qual a situação de Cabul?
Goedgebuur
- A cidade está completamente destruída. Aliás, essa é a realidade do país em geral após quase 23 anos de guerra. Boa parte das cidades foi destruída, apesar de haver algumas regiões menos devastadas.

Folha - Que tipo de restrição havia antes dos atentados?
Goedgebuur
- Uma série de regras a que devíamos obedecer para conseguir oferecer assistência médica aos afegãos, principalmente às mulheres. Apesar disso, de maneira geral, ainda era possível proporcionar um serviço médico a mulheres e a crianças.

Folha - Como vocês evitavam problemas com o regime?
Goedgebuur
- Eles mantinham um contato permanente conosco para verificar se nossa estrutura obedecia as regras afegãs. Respeitávamos os costumes locais para evitar problemas. O Afeganistão é conhecido por sua hospitalidade, e nós respeitávamos suas regras.

Folha - Como as afegãs recebiam assistência médica?
Goedgebuur
- As mulheres podiam receber tratamento quando eram atendidas por médicas ou enfermeiras. Médicos tratavam apenas homens. Tínhamos médicas e enfermeiras, em respeito à rígida separação. O atendimento a mulheres representava cerca de 60% das consultas.

Folha - Há muitos afegãos no Turcomenistão?
Goedgebuur
- A fronteira foi totalmente fechada. E os afegãos não têm o costume de se refugiarem aqui, como fazem no Irã e no Paquistão, por exemplo.

Folha - Vocês pretendem ficar no Turcomenistão?
Goedgebuur
- Por enquanto, sim. Nossa equipe quer voltar o mais rápido possível para o Afeganistão.

Folha - Membros da MSF foram expulsos do país em 1998 [voltaram em maio de 1999]. Por quê?
Goedgebuur
- Foram acusados de proselitismo, de tentar difundir a religião cristã no país.


Texto Anterior: Taleban só entrega terrorista com prova
Próximo Texto: O alvo: "Sábios" debatem futuro de Bin Laden
Índice



Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita do Universo Online ou do detentor do copyright.