São Paulo, quinta-feira, 19 de dezembro de 2002

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CAPITAL

Com visão de mundo homogênea, grupo de economistas tem origem social elevada, foi militante de esquerda, fez pós-graduação em universidades de primeira linha dos EUA, atuou no mercado e em órgãos internacionais

Trânsito entre mercado e poder cresce na privatização

VINICIUS MOTA
EDITOR DE OPINIÃO

Metamorfose. Essa é uma boa palavra para caracterizar a geração de economistas que vem ocupando posições de poder desde a fase de elaboração do Plano Real. A Folha realizou uma enquete para averiguar de onde vieram (e para onde foram) economistas que ocupam (ou que ocuparam) nos anos FHC cargos de destaque na gestão da economia nos ministérios da Fazenda e do Planejamento, no BC, no BNDES, no Banco do Brasil, na Petrobras e em agências reguladoras.
O resultado em parte confirma a intuição: como regra, quanto mais alto o cargo no governo, mais comuns são os casos em que o currículo de seu ocupante registra alternância de posições entre bancos, consultorias, empresas privadas, poder público e burocracia multilateral. Por seu turno, agências e estatais tendem a dispor, nos cargos de chefia, de maior proporção de funcionários públicos de carreira.
Cientes de que a passagem imediata de altos cargos no governo para o exercício de atividades privadas lhes poderia render críticas, muitas autoridades, ao deixarem a administração pública, se auto-impuseram uma quarentena -caso, por exemplo, dos ex-presidentes do Banco Central Pérsio Arida, Gustavo Loyola e Gustavo Franco.

Metamorfose financeira
Nos anos FHC, duas peculiaridades marcam as trocas de posição dos economistas. Com a abertura ao capital estrangeiro e as privatizações, ampliaram-se as chances de trabalho no mercado. E, com o papel de crescente destaque exercido nesse período pelo capital financeiro, bancos e fundos de investimento (nacionais ou globais) ganharam importância como locais de atuação.
A necessidade de o economista atuar em mais de um flanco para ascender na carreira vem de longe. Formar economistas, no Brasil, sempre se confundiu com formar (ou reciclar) elites dirigentes.
A socióloga e professora da Fundação Getúlio Vargas em São Paulo Maria Rita Loureiro narra, no livro "Os Economistas no Governo", os momentos decisivos da ascensão desses profissionais no Brasil.
A competência específica do economista viceja nos grupos de assessoria a presidentes e nas agências governamentais que vão sendo criadas a partir dos anos 30. As primeiras faculdades de economia no país nasceram justo com a preocupação de garantir formação modernizante às elites que assumiriam funções de liderança na sociedade e no Estado.
Em meados da década de 60, deu-se o passo que marcaria a identidade dos mais destacados economistas brasileiros: o surgimento da pós-graduação. O diagnóstico era que os cursos regulares não preenchiam o papel de selecionar a elite modernizada que se desejava. Era preciso uma instância com maior respaldo técnico e maior prestígio. E, para isso, era preciso contar com o auxílio de professores e de faculdades estrangeiras, preponderantemente dos Estados Unidos. Começa, então, a ser contada a história da geração de técnicos-políticos que ascendeu com FHC.

Metamorfose americana
Para Loureiro, o traço que marca os economistas que detiveram maior poder político nos anos FHC é a pós-graduação feita em universidades norte-americanas de primeira linha.
Mas não param por aí as coincidências que permitem identificar esse grupo de economistas, altamente homogêneo no que diz respeito a sua visão de mundo -ela mesma transformada ao longo dos anos.
Na biografia do ministro Pedro Malan estão sintetizadas algumas outras semelhanças do grupo.
Como Francisco Lopes, Armínio Fraga, André Lara Resende e Gustavo Franco, Malan cresceu numa família de corte intelectual elevado para padrões brasileiros e com inserção nos estratos sociais superiores do Rio de Janeiro -capital federal até 1960.
O pai de Malan, Elísio, foi funcionário público e, em seu núcleo familiar, Pedro conviveu com oficiais militares que exerceram papel de destaque na vida pública brasileira. Pedro Malan se formou em engenharia elétrica pela PUC (Pontifícia Universidade Católica) do Rio de Janeiro.
Foi, aos poucos, se convertendo em economista. Teve passagem inicial pela Cepal (núcleo de pensamento de esquerda latino-americano) e pela área técnica do governo.
O relacionamento com um professor americano interessado no Brasil (Albert Fishlow) lhe permitiu o passo acadêmico decisivo: o PhD em economia em Berkeley.
Fishlow, John Williamson, Stanley Fischer, Jeffrey Sachs e Rudiger Dornbusch (morto em 25 de julho deste ano) foram alguns dos professores americanos com interesse em países periféricos que exerceram influência na formação do grupo de economistas que marcou os anos do governo FHC.
De volta ao Brasil, Malan ocupa postos no governo e exerce a docência na mesma PUC em que se formou. Também passa a ser designado para cargos em organismos multilaterais (ONU, Bird e BID). Essa trajetória "pré-política" tem seu ponto máximo quando exerce a função de negociador-chefe da dívida externa em Washington na gestão de Marcílio Marques Moreira (governo Collor), processo que culminou na volta do Brasil ao circuito financeiro internacional e do qual Armínio Fraga e Gustavo Franco também participaram.
O percurso de Malan destoa do da maioria de seus companheiros economistas de escalões principais de governo pelo fato de nunca ter incluído o trabalho na iniciativa privada. Mas ele concentra, talvez de maneira incontrastável, outros aspectos fundamentais: origem socialmente elevada, militância de esquerda e de oposição ao regime militar na fase inicial da carreira, doutorado nos EUA, relacionamento com o "mainstream" acadêmico e da burocracia internacional e, no Brasil, vínculo ao grupo intelectual da PUC do Rio de Janeiro.

Sem metamorfose
O próprio Malan identifica a peculiaridade dos mais renomados economistas brasileiros, talhados, em muitos casos, para exercer funções de governo. Na introdução ao primeiro volume de "Conversas com Economistas Brasileiros", o ministro contrasta o perfil dos entrevistados -uma seleção dos mais respeitados profissionais da área no Brasil- com o dos que foram objeto de duas obras semelhantes publicadas nos Estados Unidos. No caso dos americanos, escreve Malan, "todos foram, ou são, acadêmicos "tout court", tiveram toda a sua vida profissional em universidades".
Nos termos de Maria Rita Loureiro, no Brasil o capital técnico do economista é capital político. Aqui, ele acaba por ocupar nichos do Estado que, em países desenvolvidos, geralmente são preenchidos por políticos profissionais.
E a geração de Malan, acusada pela oposição à esquerda de ter patrocinado o "desmonte" do Estado, não fugiu à regra brasileira.


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